Os Enforcados: Tragédia Neoshakespeariana de Fernando Coimbra é Cinema em Alta Voltagem
setembro 08, 2025O filme já abre com uma epigrafe narrando um antigo costume/ritual da Babilônia quando um condenado desfrutava de pleno poder e regalias na Saturnália (antigo festival em honra ao senhor do tempo, Saturno) e no quinto dia era despido, chicoteado e enforcado. Corte. Plano geral do jardim da mansão dos personagens centrais, na trilha sonora Orlando Silva canta Mal me quer, marcha-rancho de Cristóvão de Alencar e Newton Teixeira, grande sucesso do carnaval de 1940. A letra diz “Eu perguntei a um malmequer / Se meu bem ainda me quer / E ele então me respondeu que não / Chorei, mas depois Eu me lembrei / Que a flor também é uma mulher / Que nunca teve coração...” As referências existenciais do impactante drama estão postas, são pistas que o diretor Fernando Coimbra nos fornece logo no começo, nos convidando a uma atenção plena para o que vamos ver.
A partir daí se entrelaçam de forma criativa e inovadora memória, presente, destino, humor, livre arbítrio, desespero, futilidade, vingança, loucura e paixão. Tudo isso envolto nas predições das cartas do Tarô e na substancia da dramaturgia de Shakespeare.
Para desfrutar plenamente do filme o espectador não precisa conhecer as peças de Shakespeare que Fernando Coimbra utilizou para compor sua inteligente e original trama, mas se conhecer pelo menos o enredo de cada uma das três vai aproveitar melhor o tempo investido na sessão.
Macbeth, Titus Andronicus e Hamlet, marcam presença no thriller-psicológico escrito e dirigido por Coimbra não como uma simples releitura atualizada para o cenário do Rio de Janeiro nesse século 21, mas principalmente pelo que trazem das tragédias contidas nos relacionamentos humanos com suas ambições, ódios, traições, invejas, cobiças, egoísmos, ciúmes, violências, alucinações e sangue, muito sangue. São esses elementos que também fazem com que as peças de Shakespeare nunca percam a atualidade apesar de terem sido escritas a mais de quatrocentos anos, afinal a matéria prima do Bardo é o ser humano, e esse, em sua essência interior, mudou muito pouco de lá para cá, quase nada.
A escola de samba apadrinhada pelo personagem central, Valério, chama-se Unidos da Pavuna, tradicional bairro da zona norte do Rio de Janeiro. A Pavuna, topônimo que, segundo o Dicionário Aurélio, vem do tupi pab'uma e significa “lugar de trevas”, ambienta a ação não só geograficamente, mas, também, psicologicamente. O filme incorpora a partir da sua geografia territorial esse dado shakespeariano do embate permanente entre a luz e as trevas no interior de cada pessoa, marcado desde sempre pelo signo da dualidade. A cenografia de Carolina Britto capta e traduz brilhantemente essa atmosfera onde predomina os interiores da mansão dos personagens Regina e Valério, uma mansão sempre em obras, com paredes esburacadas, andaimes, britadeiras e água escorrendo pelos cantos. A fotografia de Ulisses Malta Jr. com seus tons de cores fortes em contraste com a iluminação expressionista, que realça o sempre crescente conflito interior dos personagens, é outro ponto alto do filme. A se pontuar também a edição de Karen Harley que segura o ritmo de um drama em constante ebulição com cortes precisos, sem solavancos, notadamente nas eletrizantes e bem construídas cenas de ação.
Os Enforcados é daqueles filmes onde tudo está posto milimetricamente, nada falta, nada sobra. O elenco é soberbo com destaque para a dupla Leandra Leal (Regina) e Irandhir Santos (Valério) que preenche a tela com uma verdade em seus gestos, falas, silêncios e ações proporcionando ao espectador uma epifania de puro êxtase diante daquele estado da arte da representação cinematográfica. Irene Ravache, numa atuação memorável como a mãe de Regina, traz o alívio cômico tão necessário num filme que mantém o espectador em altos níveis de adrenalina durante a maior parte dos 123 minutos da projeção. Stepan Nercessian, o Linduarte, aparece muito pouco em cena, mas o suficiente para deixar sua marca de grande ator que é. Thiago Tomé como o “irmão” de Valério também sublinha sua presença em cena.
Vi algumas críticas do filme comparando a personagem Regina de Leandra Leal com a Lady Macbeth, de fato há pontos que unem as personagens, mas são só pontos mesmo, Coimbra com admirável poder sincrético se utiliza das emblemáticas situações descritas por Shakespeare, mas, ao mesmo tempo, se distancia apresentando características bem pessoais dos seus personagens, como por exemplo a fantasia fetichista-sadomasoquista vivida por Valério e Regina.
A sequência final é uma apoteose do mais elevado cinema, através da direção, dos atores, engenhoso roteiro, encenação, decupagem, desenho de som, cenografia, iluminação, figurinos, fotografia/câmera e edição.
A última frase dita pela personagem Regina, também última frase do filme, suprime a palavra “fim” (que tradicionalmente encerra os filmes), deixando claro que os métodos utilizados pelo casal para resolver a situação deles não funcionou, e a tragédia existencial que gerou todas as complicações continua viva dentro dos que sobraram.
Confiram.
1 comentários
Excelente sinopse. Na Grécia, esses sujeitos que eram tratados como deuses e depois enforcados eram chamados de Pharmaka (singular, Pharmakon) e funcionavam sobretudo como uma espécie de "purga") de cidades emprestadas. Parabéns pela texto..
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