Biu do Violão, o Diamante Cor-de-Rosa, e a Mosca na Sopa

agosto 25, 2025


A Mostra de Cinema do 50° Festival de Inverno de Campina Grande (de 18 a 21 de agosto), que a convite de Eneida Maracajá tive a honra de fazer a curadoria, foi realizada com pleno êxito durante 4 dias, três no Mini Teatro Paulo Pontes e uma noite muito especial, quarta-feira, 20, na Praça da Bandeira. Entre os filmes exibidos nesta noite memorável estava Biu do Violão e o Diamante-Cor-de-Rosa, documentário dirigido por Romulo Azevedo sobre o mais importante artista de rua de Campina Grande no século 20. Pós exibição, entreouvi algumas observações de parte do público que me chamaram a atenção: a primeira delas foi a de um amigo querido, Sandro Alessandro Pereira, colecionador de vinis de forró e frequentador quase assíduo do Cineclube Memorial, me cumprimentou muito emocionado pela escolha do filme que revela com cristalina transparência a alma e arte desse oroboense que se tornou campinense, Sandrinho compreendeu a fundo o filme, daí sua emoção, e soube ganhar o tempo investido em sua fruição. Beleza. Todavia, nem todos tiveram esse precioso insight, um, por exemplo, disse que a cena em que Biu toca, com rara maestria, a Marcha dos Marinheiros é “muito longa”! Ora, queria o quê? Que a obra-prima do paraibano Canhoto ( popularizada por Dilermando Reis) fosse mutilada só para satisfazer a cognição Tik-Tok? Não percebeu que o filme está muito mais para a dicção choo-choo de Carmen Miranda? Veja de novo.

Teve também um ouvido privilegiado observando que Biu “era muito desafinado”. Redundante acerto, o próprio Biu diz a certa altura, com outras palavras, que possui apenas o que Deus lhe deu.

Mas a observação que mais revela o mal-estar de um certo público, não o povo, o público, é a que disse que Rômulo merecia um prêmio pela paciência de acompanhar por tanto tempo, e ainda por cima gravar imagens e som, um chato como Biu do Violão. Aí está a chave para compreender não só o filme, mas o personagem Biu e esse tipo de público.

Biu do Violão foi a cigarra alegre que de verão a verão ofereceu sua arte, violão e canto, para amenizar a dura vida das formigas amargas que só trabalham, trabalham, trabalham, para acumular em suas egoístas despensas e cofres  alimentos e dinheiro  que não compartilham com ninguém. Essas formigas acreditam que essa robotização que as caracteriza e congela suas almas e corações é o único trabalho “digno”, o demais é vagabundagem, é chateação. Nesse sentido Biu é a mosca que pousou nessa sopa (Raul Seixas também foi um Biu do Violão, noutra dimensão, percebem?); a simples presença de Biu nas ruas da cidade, na hora do rush, da convulsão da matéria, empunhando um violão e soltando o verbo nas canções de Roberto e Erasmo Carlos, era um soco na boca do estomago, um peteleco na orelha, um cascudo no quengo, uma desafinada total no coro dos contentes como o fez no seu tempo o poeta nordestinado Torquato Neto, outro “Biu”, se é que me entendem.

Com essa atitude transversal na horizontalidade das ruas e praças, Biu, como Sergio Sampaio, artista cachoeirense como o Rei, só queria mesmo botar seu bloco na rua, ele também queria isso e aquilo / Um quilo mais daquilo, um grilo menos nisso / É disso que eu preciso ou não é nada disso / Eu quero é todo mundo nesse carnaval. Daí o incomodo, a censura, a incompreensão. Lembro há muitos anos Biu entrando, violão em punho, numa dessas manhãs de segunda-feira do Calçadão, no cafezinho São Braz, um sujeito não suportou aquela lufada lírica-musical, aquela festa inesperada num momento quase luto como é uma ressacada segunda-feira de manhã, partiu para cima do artista, arrancou-lhe com violência o violão das mãos, jogou-o no chão, pisoteando-o com fúria até parti-lhe em mais pedaços que o contido no pinho de sua estrutura. Biu apenas observou toda cena com legítima perplexidade, acredito que sentia mais pelo sujeito que pelo violão, apanhou com tranquilidade o corpo dilacerado do instrumento e saiu dali caminhando com o seu característico passo, como Carlitos. Devo dizer que antes do dia findar, bem antes, apareceu novamente no cafezinho, empunhando um violão novo em folha, ainda com a etiqueta da loja presa no cavalete. Dessa vez não apareceu nenhum Procusto para querer lhe impor, na truculência, seu padrão de vontade, sua intolerância.

Esse episódio mostra que a cidade que se diz moderna, avançada, esconde, desde sempre, um lado conservador (no mau sentido do termo), inquisidor, que não suporta nada que não caiba nas medidas do seu “leito”. Nesse viés o filme de Rômulo dialoga com outro filme exibido na mesma noite na praça da Bandeira, é Habeas Pinho, de Nathan Cirino (diretor) e Gal Cunha Lima (produtora executiva), que conta uma história real acontecida na cidade no final dos anos 1950 envolvendo violão e repressão. Não por acaso Biu do Violão e o Diamante-Cor-de-Rosa antecedeu a exibição de Habeas Pinho, sacaram a causalidade?

Exatos setenta e cinco dias após a sua partida, Biu do Violão reapareceu em deslumbrante colorido na explosão de pixels e em som magnífico da tela gigante de Tony em plena praça da Bandeira, um dos seus habitats naturais, me fazendo lembrar a última estrofe de um poeta, incompreendido como Biu, rechaçado pelas elites como Biu, poeta que teve de se exilar da Paraíba e morreu na distante Leopoldina nas Minas Gerais, mas vive para sempre no coração do povo, como Biu. Poeta, inclusive, que não casualmente era a inspiração maior do outro poeta, Ronaldo Cunha Lima, personagem do filme Habeas Pinho. Nesse poema Augusto dos Anjos fala da pessoa dele, mas bem poderia estar falando de Biu do Violão, nosso diamante cor-de-rosa. Eis os versos: Quando pararem todos os relógios / De minha vida, e a voz dos necrológios / Gritar nos noticiários que eu morri / Voltando à pátria da homogeneidade / Abraçada com a própria Eternidade / A minha sombra há de ficar aqui!

Fizeram as conexões?

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