Um Palco, um Épico, um Jumento, Beatles e a rebeldia sem causa naquela Semana Santa
julho 02, 2021A Semana Santa do ano da graça de 1970 começou no dia 22 de março, o Domingo de Ramos. Mas o grupo teatral “Raul Prhyston” comandado pelo teatrólogo Antonio Alfredo Camara Filgueiras já vinha ensaiando desde o mês de janeiro a peça “O Nazareno”, épico bíblico escrito, produzido e dirigido por Camara.
O elenco tinha grandes nomes do teatro na época, Evandro Barros fazia Herodes, Camara encarnava o difícil papel de Judas e Marcos Capiba era Jesus. Afora isso tinha uns 15 ou 16 figurantes que ora encenavam a guarda pretoriana romana, ora eram os apóstolos, até a multidão que gritava “É réu de morte!”, “Crucifica!”. Meu irmão Rômulo e eu fazíamos parte do elenco de figurantes, era nossa estreia no palco de um teatro. É verdade que já havíamos ensaiado uma peça chamada “Nós e a realidade” (ou algo parecido), uma colagem de textos que incluía até citações dos almanaques Capivarol e Biotônico Fontoura feita por um amigo nosso aspirante a dramaturgo, também varamos madrugadas sob a direção de Camara (sempre ele) verbalizando e gesticulando o texto “Deus lhe pague” de Joracy Camargo (um grande sucesso nacional na imortal interpretação de Procópio Ferreira), mas nenhum desses espetáculos foi estreado. Pra valer mesmo foi a superprodução “O Nazareno”, teatro lotado de quinta a domingo com direito a uma sessão extra na tarde do sábado de aleluia.
Havia uma disputa velada entre os dois maiores encenadores do teatro clássico na cidade: Fernando Silveira e Alfredo Camara. Num ano era apresentado “O Gólgota”, texto, produção e direção de Silveira, no outro ano era a vez de Camara com “O Nazareno”. Lembro de uma extensa discussão do elenco principal com o nosso diretor a respeito da colocação de um jumento no palco para carregar Jesus na entrada triunfal em Jerusalém. É que no ano anterior Fernando Silveira tinha surpreendido a todos colocando porcos, galinhas, bodes e patos na cena dos vendilhões do templo, então era preciso fazer mais, dizia a cúpula do espetáculo. A proposta do jumento foi aprovada por unanimidade, o único problema foi “operacionalizar” a participação especial daquele animal de índole teimosa e pouco afeito a refletores, palco e plateia.
O cartaz publicitário de “O Nazareno” foi feito por Golo, um argentino que se estabeleceu num primeiro andar do finalzinho da Maciel Pinheiro (onde até bem pouco tempo funcionou uma loja de calçados), lá ele morava e trabalhava em seu atelier artístico produzindo pôsteres com uma técnica completamente nova entre nós, o silk-screen sobre papel. O resultado desse processo era uma espécie de xilogravura pop, bem no espírito daqueles nascentes anos 70. Qualquer evento que tivesse um pôster feito por Golo já se diferenciava dos demais, era um signo muito levado em conta.
A dança de Salomé para Herodes, mais puxada para a rumba do que para as coreografias orientais, era um dos pontos altos do espetáculo.
Camara me escalou para a cena de abertura de “O Nazareno”, juntamente com um colega figurante que infelizmente não recordo o nome, só nós dois no palco, vestidos de soldados romanos, na porta do palácio de Herodes. A fala dizia assim: “Reina calma no palácio do rei Herodes”, eu respondia; “Sim, a noite foi tranquila e o dia já avança”. Concentrei-me semanas para dizer essa fala logo na abertura da peça, quando a cortina abria, lá estávamos nós há mais de mil e novecentos anos atrás, na porta daquele palácio no meio do deserto do Oriente Médio.
Na noite da estreia na quinta-feira, a turma do bairro da Prata foi em massa para o teatro para ver “os galegos de Dona Wanda” encenando uma peça. Era um grupo de espectadores muito exigente e com uma disposição crítica acima da média, sem falar na ironia explícita. Todos nós conhecemos a arte de Téspis e Shakespeare assistindo aos dramas encenados no palco-picadeiro do Circo Uberlândia que passou uma temporada armado no campinho do racha da Avenida Rio Branco com Antenor Navarro. Peças como “Jezebel”, “O Ébrio”, “Marcelino pão e vinho” e “Farrapo Humano” foram apresentadas pelo esforçado elenco do Uberlândia bem no meio dos anos 1960. Eram peças diárias, para isso tinha de ter a figura do “ponto”, um camarada que ficava escondido numa pequena cabine no centro do palco e lia o texto em voz baixa para os atores repetirem. Havia também a cenografia toda assentada nos tradicionais telões de fundo, painéis imensos pintados à mão mostrando paisagens relativas ao drama encenado. Um desses telões do circo, o da peça “Farrapo Humano”, ambientada no Rio de Janeiro, ainda trago na memória pela criativa imaginação do autor anônimo que para sintetizar o cenário da cidade maravilhosa pintou o Pão de Açúcar e colocou em cima o Cristo Redentor.
A noite da estreia de “O Nazareno” trouxe bons presságios para a curta temporada de quinta a domingo, lotação esgotada, no balcão, camarotes e plateia não cabia mais ninguém.
Os acordes do tema musical composto por Miklos Rozsa para o filme “O Rei dos reis” encheram com o seu peso sinfônico a sala, a cortina foi abrindo lentamente... quando eu vi a plateia lotada, aquele calor que emanava do público, todos aqueles olhos e ouvidos voltados para nós dois, senti um calafrio percorrer toda espinha dorsal e se alojar no coração que disparou descontroladamente. Num esforço titânico para manter a calma, esperei a deixa do colega e disparei: “Sim, a noite foi tranquila e o dia já avança”. Nesse momento um grito vindo da plateia me sugou como um poderoso imã do deserto da Judéia há mais de mil anos para a Campina Grande do século XX, bem ali no proscênio do Municipal, não mais um heroico soldado da guarda imperial de Herodes, o Grande, mas um simples mortal flagrado num precário equilíbrio em cima daquela corda bamba invisível que fica esticada do palco até a primeira fila de poltronas do teatro. Aquela voz desconcertante, qual as trombetas de Josué em Jericó, destruiu em segundos a tal muralha que diziam existir separando o mundo do público do mundo do espetáculo. O grito ecoou na caixa cênica e foi ampliado pelo revestimento acústico: “FALA MAIS ALTO IRMÃO DE BADU!”. Fui salvo pelo próprio texto que indicava na rubrica: “os soldados se retiram da porta do palácio para a coxia esquerda”. Ufa!
Voltemos ao jumento.
O asno foi alugado de um carroceiro que prometeu ser o bicho manso e obediente, e era. O único problema é que ele entrava em cena docilmente carregando Jesus no lombo, no centro do palco parava para que fossem ditas as falas correspondentes à cena. O nó cego estava justamente aí, o jumento parava e ali ficava e não tinha cristão que fizesse ele continuar a caminhada. O dono querendo nos tranquilizar garantia: “No dia ele anda, isso é só falta de costume”. Chegou a noite da estreia, a cena do Domingo de Ramos, entra Marcos Capiba montado no jegue, a multidão ovaciona Jesus, no meio do palco a procissão para, Jesus fala para a multidão e dá o sinal para prosseguirem, mas o jumento empacou, fincou as quatro patas no tablado e com o seu olhar manso e casmurro parecia cantar a velha marchinha carnavalesca que diz “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. O jeito foi Marcos desmontar do jegue e colocar um “caco” (improviso) no texto dizendo para a multidão: “É melhor continuarmos a pé”, enquanto a cortina fechava rapidamente. Nas apresentações seguintes a cena do Domingo de Ramos foi suprimida da encenação.
A maquiagem e caracterização dos figurantes era um capítulo à parte. A primeira resistência a ser quebrada era aceitar botar batom na boca pois, segundo nosso diretor Camara, vista da plateia a boca sem batom não aparece delineada e sim como uma mancha disforme (o que é verdade). À parte esse detalhe, nós tínhamos total liberdade para cuidar da maquiagem e caracterização, então o que fizemos? Levamos a capa do LP dos Beatles “Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band” para copiar as costeletas e bigodes e aplicar nos apóstolos, soldados e multidão que nos cabia interpretar. Na irresponsabilidade anárquica dos 16 anos aquilo era um gesto de rebeldia e vanguarda (hoje digo “vã guarda”), ou seja, trazer para uma história bíblica a transgressão dos costumes patrocinada pelos Beatles naqueles anos pré “the dream is over”.
Meu irmão Rômulo já usava óculos, eu ainda não. Na cena em que Jesus expulsa os vendilhões do templo, lá estávamos nós como figurantes, fazendo os vendilhões. De repente escuto um murmúrio na plateia, prenuncio de uma sonora gargalhada, olho de lado e vejo Rômulo com sua túnica de judeu portando óculos no ano 33 da nossa era e se não bastasse exibindo no pulso seu mais que futurista, para a época do drama, relógio. Fiz um sinal com a cabeça indicando a situação, ele foi saindo de cena de fininho antes que explodisse a sonora gargalhada na plateia.
Outro momento muito esperado pelo elenco eram as cenas do banquete no palácio de Herodes e a Santa Ceia, era nessa hora que tínhamos a oportunidade de comer alguma coisa depois de horas com o estomago vazio, explico: o elenco chegava muito cedo no teatro, por volta de 3 da tarde, para preparar os cenários, o figurino, a maquiagem, os adereços. Quando a peça começava às 9 da noite a fome já era intensa, o jeito era esperar o encerramento das cenas e, quando a cortina fechava, o elenco saltava como uma matilha de cães sobre os galetos, a farofa e as taças de Q-Suco de uva, à guisa de vinho. Era uma cena deprimente, os convivas do rei Herodes, e os apóstolos de Jesus (na Santa Ceia), se engalfinhando para “tirar a barriga do prejuízo” como se dizia na época.
Nosso querido diretor Antônio Alfredo Câmara, que levava aquilo tudo com muita seriedade, não participava dessas demonstrações de barbárie.
Câmara tinha um método próprio de dirigir aquele elenco enorme, a maioria sem a menor experiência no palco. Eu mesmo experimentei uma recomendação dele para vencer o medo, no meu caso terror, de enfrentar a plateia. No dia da estreia ele me ensinou “ antes de entrar em cena mire por alguns minutos a luz do panelão (refletor que compunha a iluminação do espetáculo), aí você entra e não enxerga a plateia, é tranquilo”. Sim, parecia tranquilo, mas ele esqueceu de dizer que além da plateia você não enxergava nada com a pupila contraída por causa da luz intensa do refletor. Entrei em cena atordoado, mais parecia o oráculo Tirésias de “Édipo Rei” que um soldado romano com a desvantagem de não ter um guia me conduzindo como na tragédia grega. Cego e desesperado procurava as marcas no palco onde deveria me posicionar, não via nada só aquele breu trágico. Não caminhei três passos e logo dei uma topada numa pedra cenográfica, a pedra, uma armação de arame revestida de papelão, rolou como nos filmes de Maciste e Hércules da Cinecitá romana, a plateia não perdoou e explodiu na gargalhada. Compreendi ali que o fio que separa o drama da comédia é mais tênue que um fio de cabelo. Até o fim da temporada não repeti mais aquela técnica ensinada pelo mestre Camara.
Um dos pontos altos da peça, só perdendo em intensidade dramática para a cena da crucificação, era o monólogo seguido do suicídio de Judas. Cena forte, bem escrita e magistralmente interpretada pelo próprio Câmara que era um ator muito acima da média. Nós, os rebeldes sem causa, não tínhamos, ou não queríamos ter, a dimensão daquele esforço artístico, a concentração do ator, o cuidado para dar o melhor de si e arrebatar a plateia. Nessa cena antológica nós ficávamos nos bastidores aguardando o momento do enforcamento de Judas, troncos de madeira e folhas de zinco nas mãos para imitar o som dos raios e trovões que se seguiam após a morte do traidor do Cristo. Primeiro agitava-se a folha de zinco, ato contínuo jogava-se o tronco no chão de madeira do palco e ele rolava produzindo um som semelhante ao trovão. Judas dizia as últimas palavras, colocava no pescoço o laço da corda amarrada no galho da árvore e se lançava para a morte provocando a trovoada que simbolizava o protesto da natureza contra aquele traidor. Nós, os rebeldes moleques, fazíamos a festa agitando as folhas de zinco e jogando os troncos no chão. A cena terminava, a cortina era fechada, e nós lá nos bastidores trovoando às gargalhadas sem a mínima consideração para a solenidade que a cena exigia. A nossa juventude, reconheço, tinha uns arroubos que beiravam a estupidez.
Sabotagens involuntárias à parte, aquele espetáculo reunia a fina flor das artes cênicas na cidade naquele momento do tempo: Alfredo Câmara, autor, produtor e diretor; telões pintados por Joel Cavalcanti que também fazia a cenografia e ajudava na maquiagem; Evandro Barros e Marcos Capiba, entre muitos outros, no suporte do elenco; tinham também as atrizes que infelizmente não guardei os nomes; e nós os figurantes estreando na ribalta naquele espetáculo solene, quase um ritual sacro, mas que para nós ignorantes e mal amanhados não passava de mais uma oportunidade para desconcertar o ambiente e impor a nossa rebeldia anárquica custe o que custasse.
Pano Rápido.
9 comentários
Muito bom, professor Romero!
ResponderExcluirA estréia dos "galegos de dona Wanda Elizabeth".
Sensacional.
Caro Romero, assim se faz memória.
ResponderExcluirFazer o teatro, estar na ribalta é ainda melhor que contempla-lo! Que lembrança festiva e maravilhosa, professor!!!
ResponderExcluirO que seria da vida sem Arte e sem histórias pra contar?
ResponderExcluirQue privilégio termos Romero para nos brindar com tudo isso!
História cheia de referências, grandes personagens e um humor lírico que resgata gargalhadas repletas de potência de vida. Um espetáculo, Romero! “Deus lhe pague” .
ResponderExcluirO texto está ótimo, mas a foto com cara de brabo é a cereja do bolo.
ResponderExcluirQue texto e história maravilhosos que me tiraram do tempo para dar muitas risadas. E ainda descobri o blog!
ResponderExcluirÉ um belo texto. Mesmo não tendo a oportunidade de ter vivido tudo isso, me fez me sentir mais próximo desse tempo.
ResponderExcluirQue delícia de texto, mais que fiel; lamento não ter estado no teatro para assistir o espetáculo que, com certeza, não me seguraria no riso ao avistar os bravos e indômitos figurantes, os galegos da professora Wanda.
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