A Tragédia de Macbeth: O Triunfo do Bem sobre o Mal, da Luz sobre as Trevas
fevereiro 01, 2022Comecei a ter contato com os textos de Shakespeare em 1972, através de amigos que cursavam a escola de teatro da UFRJ, na Praia do Flamengo. Eu ainda trazia gravadas na retina (e no coração) as imagens do Romeu e Julieta de Zefirelli (1968), logo fui atrás do texto da tragédia e consegui com esses amigos a tradução do poeta Onestaldo de Pennafort, se não me equivoco uma edição da Civilização Brasileira. Daí para a frente, meu interesse pela obra de Shakespeare só aumentou, tinha então 19 anos.
Passados 50 anos, continuo com o mesmo interesse na obra do bardo. No final do ano passado adquiri finalmente, em 3 volumes, o teatro completo de William Shakespeare, tradução de Barbara Heliodora (da qual eu tinha uma tradução de Macbeth lançada em 2015, pela Nova Fronteira).
Nunca tive a oportunidade de ver uma montagem de WS no palco de um teatro, no cinema já vi muitas adaptações com predileção pela tragédia escrita, segundo especialistas, entre 1603 e 1606 e que foi também adaptada para a ópera por Giuseppe Verdi (com libreto de Francesco Maria Pieve), em 1847.
Macbeth é inspirado num personagem histórico real, o rei Macbeth da Escócia, conforme registra o livro de 1587, The Chronicles Of England, Scotland and Wales, livro que conta a vida dos monarcas ingleses, escrito pelo historiador Raphael Holinshed, fonte de inspiração e pesquisa de Shakespeare para muitas de suas peças.
A primeira aparição de Macbeth na tela do cinema se deu ainda na época do cinema mudo, no ano 1898 do século 19, um curta com o ator Johnston Forbes-Robertson no papel-título.
Comecei a ver as primeiras versões de Macbeth para o cinema em 1972. Vi a de Polanski produzida no ano anterior, depois vi a de Orson Welles feita em 1948, Macbeth: Reinado de Sangue (sessão na Escola de Teatro da UFRJ, debate conduzido pelo crítico e ensaísta Yan Michalski); uma gravação de uma montagem produzida no palco do Royal Shakespeare Theatre de Londres foi a terceira; na sequência vi o deslumbrante Trono Manchado de Sangue, versão japonesa da tragédia dirigida por Akira Kurosawa, em 1957. Vi ainda Michael Fassbender fazendo Macbeth, sob a direção de Justin Kurzel, em 2015. Em agosto de 2020, no 46º Festival de Inverno de Campina Grande (Viva Eneida!), tive a grata surpresa de ver em vídeo uma inovadora montagem da peça pelo Escritório das Artes de São Paulo, Titus Macbeth, uma fusão de dois textos de Shakespeare, concepção e direção de André Guerreiro Lopes com grande elenco e a estupenda Helena Ignez. A mais recente adaptação estreou agora, em 14 de janeiro, no streaming Apple +: A Tragédia de Macbeth, de Joel Cohen (2021).
Gosto de todos. Cada um tem sua particularidade, sua forma de transpor para a linguagem cinematográfica o texto escrito para o teatro. Tem também suas licenças poéticas como, por exemplo, na versão de Roman Polanski, produzida por Hugh Hefner, fundador da revista Playboy, onde, talvez por imposição do magnata do império das coelhinhas, o cineasta polonês colocou Lady Macbeth em seu delírio psicótico caminhando nua nos corredores do castelo numa região onde a temperatura está sempre abaixo de zero. Justin Kurzel, em 2015, fez a floresta de Birnam avançar sobre o castelo fincado no monte Dunsinane, não como pede o texto original, mas em forma das cinzas levadas pelo vento da mata em chamas. Kurosawa transladou a tragédia para o período Sengoku, século 16, no Japão e rebatizou o personagem chamando-o Taketoki Washizu, uma interpretação memorável de Toshiro Mifune. Joel Cohen nesta mais recente adaptação faz com que uma única e excelente atriz, Kathryn Hunter, interpretasse as três bruxas, mudando apenas as expressões corporais/faciais e o tom da voz (recurso cênico utilizado igualmente por Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol, 1964, quando o ator Othon Bastos interpreta os cangaceiros Corisco e Lampião a uma só vez.)
Nenhuma dessas licenças tomadas pelos diretores compromete as obras, afinal tratam-se de licenças e o texto aberto de Shakespeare (não por acaso está aí há mais de 400 anos sendo montado e remontado) permite essas inflexões, também nunca é demais lembrar que estamos falando de cinema, não de teatro.
Escolher o ator negro Denzel Washington para fazer Macbeth, embora não seja nenhuma novidade já que Orson Welles montou em Nova York em 1936, uma adaptação da tragédia com elenco totalmente formado por atores e atrizes negros, reafirma a universalidade multifacetada do texto que transcende a estereótipos de raça, gênero, etnia. Dessa forma, Macbeth nos é apresentado em seu âmago, um ser humano débil, confuso e atormentado não importando a cor da sua pele.
O plano de abertura do filme, com a tela explodindo em luz, forçando até uma contração física das nossas retinas, coloca de cara o tema subjacente que percorre toda a tragédia de Shakespeare e o filme de Cohen: a batalha da luz contra as trevas. Aos poucos a imagem vai se tornando mais escura e então aparece o primeiro pássaro preto fazendo evoluções, tingindo a imagem com a nova tonalidade. A partir daí estão postas as forças que vão duelar, interiormente, dentro de cada personagem, durante o desenrolar da tragédia.
O preto e branco da fotografia, uma paleta de cor que traz na própria textura o signo da dualidade, do contraste, do conflito, acentua no filme a essência da tragédia shakespeariana.
A opção por uma cenografia e iluminação expressionistas, mais que um mero formalismo à guisa de homenagem ao cinema clássico alemão da segunda década do século 20, é a tradução esmerada em imagens do drama interior dos personagens aprisionados num labirinto mental de ambição e poder.
“Se o bem e o mal existem/Você pode escolher”, diz a canção de Roberto e Erasmo Carlos, Macbeth dirige seu livre arbítrio para o mal, é verdade que há a profecia das bruxas e que sua esposa, Lady Macbeth (trabalho brilhante de Frances McDormand), o tenta insistentemente para a prática do mal, mas a sabedoria que não é do tempo nos ensina que a tentação é fogo, e a vitória sobre a tentação é luz. É difícil, muito difícil triunfar nesta batalha, mas não é impossível.
Lady Macbeth também não é uma pessoa predestinada a fazer o mal, o mal entra nela por escolha, por opção, e Shakespeare deixa isso claro no monólogo, quase uma oração, que ela faz ao receber a notícia que o rei, primo do seu marido Macbeth, vai pernoitar no castelo; eis a tradução de Barbara Heliodora: “É rouco o próprio corvo/Que anuncia a fatídica chegada/Do rei à minha casa. Vinde, espíritos/Das ideias mortais; tirai-me o sexo:/Inundai-me, dos pés até a coroa, /De vil crueldade. Dai-me o sangue grosso/Que impede e corta o acesso do remorso;/não me visitem culpas naturais/Para abalar meu sórdido propósito/Ou me fazer pensar nas consequências;/tomai, neste meu seio de mulher, /Meu leite em fel, espíritos mortíferos! /Vossa substância cega onde andar, /Espreita e serve o mal. Veias, negra noite! /Apaga-te na bruma dos infernos, /Pra não ver a minha faca o próprio golpe/E nem o céu poder varar o escuro/Para gritar-me “! Para! Para”.
O assassinato do rei, hóspede dos Macbeth (não é spoiler, isso é conhecido há pelo menos quatro séculos), confirma a escolha do casal pelo caos, pelas trevas, e essa eleição sela seus trágicos destinos.
O plano final dos pássaros pretos em revoada, nuvem escura volumosa, mas fugindo às pressas do poder da luz, denota na imagem a vitória inconteste sobre as trevas e a instauração de um novo período de paz, justiça, beleza e harmonia no reino da Escócia.
A história está repleta de exemplos que confirmam essa verdade: o nazismo, o fascismo, o comunismo, as ditaduras de todas as cores e direcionamentos ideológicos, as opressões do diário viver que se disfarçam em eufemismos hipócritas do tipo “segurança nacional”, “estado de exceção”, “segurança sanitária”; todos desmoronaram ou estão para desmoronar.
Não sei explicar intelectualmente o “por quê”, de Macbeth ser o meu texto preferido de Shakespeare (nunca fiz nem pretendo fazer um estudo técnico-acadêmico sobre a obra), mas intuitivamente não tenho dúvida, e essa versão de Joel Cohen iluminou em definitivo essa certeza, que o que me atrai nele é a reafirmação do triunfo do bem sobre o mal, da luz sobre as trevas. Sei que hoje em dia esses valores estão meio que fora da curva, há uma enferma tendência de exaltação do caos, da desordem, do feio e do podre, basta passar o olho nas manchetes da imprensa ou em volta do quarteirão para constatar isso, mas apesar dessa contratransferência o planeta terra é um planeta protegido pela luz e quem não gostar disso é melhor procurar uma alternativa fora daqui.
Apesar da complexidade dos seus dramas, tragédias e comédias, Shakespeare foi um artista popular que lotava o teatro com suas encenações, seus textos têm aquela rara qualidade de dizer de forma inteligível para todos coisas profundas, talvez isso explique a longevidade e o alcance mundial do seu teatro.
Encerro convidando você a ver este filme, um dos melhores lançados até agora neste ano, e aproveito para lembrar os versos de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, também artistas populares, na música Juízo Final, que bem poderia servir de trilha para Macbeth: “O sol há de brilhar mais uma vez/ A luz há de chegar aos corações/ Do mal será queimada a semente/ O amor será eterno novamente.”
8 comentários
Uma aula de olhares multiplos para o plural poeta e dramaturgo inglês...ser este ser Romero Azevedo sempre.
ResponderExcluirAtualiza-se a demanda de nunca esquecermos de Shakespeare! Ótimo texto, professor
ResponderExcluirQue viagem! Arte, história e intelectualidade num nível acima da minha humilde sapiência.
ResponderExcluirExcelente passeata entre as versões (que eu nem conhecia!) de macbeth! A minha favorita, é a de 2015
ResponderExcluirGostei muito do texto! Fiquei pensativo sobre como seria legal ouvir "Juízo Final" como trilha de uma adaptação de Macbeth. Ainda não vi a versão com o Denzel, mas essa leitura me despertou o interesse em assistir a ela ainda hoje!
ResponderExcluirMais do que uma alegria ler os sempre assertivos e esclarecedores textos de Romero, é saber de seus entrecruzamentos e agenciamentos que lhes perpassam, tudo de maneira muito sucinta, mas mão por isso menos profundas, que nos leva a nos permitir reavermos a visão e atravessamento com/por essas obras. Sempre mais que um prazer, professor Romero, ler seus textos!
ResponderExcluirConheço as obras de Shakespeare, mas nunca fui além de esparsas leituras descomprometidas. Romero nos trás reflexões não apenas sobre a obra e a indicação do filme, mais o que se pode, quatrocentos anos depois, aprender com as obras de Shakespeare. Parabéns Romemo.
ResponderExcluirO texto faz aflorar o que há de mais sublime no real sentido de obra aberta, demonstra as incontáveis possibilidades que tem o cinema de apresentar o âmago das ambiguidades humanas, a vida em sua intimidade subjetiva através de grandes obras. Excelente texto, Romero Azevedo sempre ampliando o olhar e aguçando a escuta.
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