Filme/Vídeo "A Alma da Feira" É Inovador e Surpreende Pela Qualidade e Esmero
agosto 25, 2023Tudo já foi dito sobre a feira de Campina Grande, e tudo ainda precisa ser dito sobre a feira de Campina Grande.
O novo filme/vídeo A Alma da Feira, lançado na sessão especial de encerramento da Mostra de Cinema do 48º Festival de Inverno (25 de agosto de 2023), confirma o escrito acima. Produzido, gravado, dirigido e editado pelos estudantes da disciplina Semiótica e Semântica do Produto do Curso de Design da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande), o trabalho foi todo orientado e supervisionado pelo professor Wellington Gomes de Medeiros.
Os alunos de Wellington penetram na feira e captam com as câmeras de seus aparelhos celulares imagens do ambiente e depoimentos dos feirantes. Se do ponto de vista da fotografia, falo do código visual e cromatismo, nada se possa fazer porque a técnica já vem embarcada no aparelho e é determinada pelo fabricante (alguns efeitos de iluminação artificial, num estúdio por exemplo, ou o uso de filtros, podem atenuar isso, o que não é o caso desse documentário gravado com luz natural), resta aos estudantes em sua primeira experiência audiovisual os enquadramentos e os movimentos com a câmera, e isso eles fazem com rara sensibilidade e percepção do espaço cênico (a feira) e seus personagens (os feirantes e as pessoas que circulam pela feira).
Contrariando a regra dominante, em nenhum momento os estudantes fingem intimidade com o objeto filmado, os enquadramentos demarcam essa distância (os comerciantes estão sempre do lado de dentro do balcão e os estudantes fora), os entrevistadores não aparecem no campo da imagem (salvo na apresentação dos créditos, mas já fora do assunto abordado) nem suas vozes são ouvidas, e o deslocar da câmera em travellings pelo interior da feira denota claramente que eles estão ali de passagem, observando uma paisagem diferente, que não faz parte do seu cotidiano. Mas isso não torna o resultado frio ou postiço, há um ponto chave que demole qualquer muralha que os separe, é o encontro de almas, deles e dos feirantes. Um encontro que é revelado pelo senso estético dos enquadramentos/movimentos das câmeras e especialmente o gesto amigo de ouvir o outro, colocar generosamente o dispositivo de comunicação a serviço da palavra de quem raramente é ouvido em suas histórias, demandas e necessidades, e não são poucas. Essa união anímica é comovente, eles se nutrem mutuamente, dá para perceber a feliz integração estudantes/feirantes na forma como os depoentes se dirigem para a objetiva da câmera, descontraídos, se sentindo à vontade diante de um aparelho que geralmente causa inibição e um certo temor nas pessoas. Essa postura não cria uma falsa espontaneidade, ao contrário dá para notar que o discurso de cada um deles é articulado (a fala da senhora que vende calçados demonstra bem isso), eles sabem que estão sendo filmados e aproveitam a oportunidade para relatar um pouco sobre o seu trabalho, suas vidas e sua história na feira, a diferença é que o fazem sem aparentar nenhuma tensão, como se estivessem conversando entre amigos. A impressão que tenho é a de que o lado humano da feira, ou a alma dessa feira como bem destaca o acertado título do filme/vídeo, não poderia ter sido captada de forma tão sensível como esses estudantes conseguiram. Há uma cena que firma o pacto de interação entre eles: um transeunte anônimo vem caminhando e ao perceber a presença da câmera faz um gracejo diretamente para a objetiva, um som onomatopaico produzido pela bochecha e a boca, uma forma amistosa, tranquila e fraterna de dar boas-vindas aos jovens realizadores.
Além disso, o filme/vídeo evidencia através dos depoimentos registrados o preocupante abandono em que os feirantes e a feira se encontram, um deles diz que de nada servem os títulos dados à feira de patrimônio imaterial, centro de tradições e cultura etc, se a realidade que eles enfrentam é diametralmente oposta ao que essas homenagens deveriam representar. As instalações precárias do mercado central há muito reclamando uma revitalização, o afastamento progressivo dos consumidores provocado em grande parte por essa insalubridade reinante, a falta de segurança, a não renovação dos postos de trabalho pelas gerações de hoje que não veem “futuro” naquela atividade comercial, são alguns dos pontos que explicam a acelerada decadência daquela feira que já foi a Meca dos feirantes não só de Campina Grande, mas também dos 53 municípios que compõem o Compartimento da Borborema.
A edição, outro realce notável do filme/vídeo, não se limita às restrições convencionais fundadas sobre a continuidade espaço temporal de imagens e sons numa ordem cronológica como o fazem a composição clássica da maioria de filmes no gênero; é uma edição moderna, vibrante, uma bricolagem que aproxima o discurso cinematográfico ao hipertexto dialogando assim com a comunicação contemporânea, sobretudo a Internet. Logo na abertura a edição mostra essa nova organização do discurso, um exemplo é a introdução da música A Feira Grande de Campina Grande(Novena) de Numa Ciro e Hermeto Pascoal (disponível em todas as plataformas digitais), esse é um momento que amplia a consistência da narrativa fílmica pois não é um simples casamento com as imagens ilustrando a letra da música cantada por Numa. Não, a letra descreve outros aspectos da feira enquanto a imagem mostra cenas que não se relacionam com essa descrição, o que acontece é uma nova significação, uma ampliação do volume de informações sobre aquele universo, é uma utilização inteligente das duas bandas oferecidas pelo cinema: a banda de imagens e a banda sonora num aproveitamento integral dos recursos disponíveis. Essa opção linguística proporciona um salto sensorial que exige uma atenção mais dirigida do espectador para acompanhar o que está sendo dito/cantado e o que está sendo mostrado. Esse procedimento através da operação da edição (que não é uma invenção desse filme/vídeo), é o antípoda do feijão-com-arroz dos documentários estilo Globo Repórter e também dos telejornais onde a redundância imagem-som leva a crer que os espectadores são estúpidos. É verdade que há momentos no filme/vídeo em que o som descreve o que é mostrado na imagem, mas não é um procedimento da edição, é o próprio entrevistado que exibe e fala dos produtos que estão sendo vistos (como o vendedor de cereais, a vendedora de calçados de couro, a vendedora de vestidos, o fabricante de selas e a vendedora de doces e queijo coalho).
A inversão do movimento na imagem, com as pessoas andando para trás, é uma ruptura com o realismo documental, uma sacudida no espectador para lembrar que aquilo que está sendo visto não é a “realidade” (como esse tipo de filme gosta de iludir), mas um discurso elaborado sobre essa realidade. Aqui a edição quebra a imaculada “vidraça” que separa o mundo da tela do mundo do público assumindo uma função estruturante que coloca os espectadores não só para “dentro” do que está sendo mostrado, mas principalmente mostra “como” está sendo mostrado, uma sacada brilhante. É animador ver e saber que as inovações pioneiras de Sergei Eisenstein, Lev Kuleshov, Jean-Luc Godard, Dziga Vertov e outros, inovações que apontaram distintos caminhos para o cinema além da narrativa linear na ficção e a obrigatoriedade de os documentários mostrarem “a verdade”, não ficaram enclausuradas num arquivo de cinemateca, estão ecoando no presente e dão corpo A Alma da Feira.
Uma das imagens que me fisgaram logo mostra que apesar das pressões mercadológicas impostas pela indústria pesada de manufaturados, ainda há uma resistência a essa pressão: na barraca onde a mulher vende calçados de couro, feitos à mão em pequenas fabricas artesanais, os expositores mostram a marca das sandálias de borracha Havaianas, mas os produtos expostos são as peças de couro.
Agora cito, em ordem alfabética, os nomes de todos estudantes envolvidos neste projeto, é um reconhecimento ao esforço e esmero deles que resultou nesse belo trabalho audiovisual: Adna Maria de Souza Moura, Andrew Jean de Jesus Araujo, Andrhey Ferreira, Caio Verissimo da Rocha, Eduardo Oliveira de Lima, Gideilton Jose Dantas Junior, Haniel Pereira Macedo, Helena Luma F. Magalhães, Isis Oliveira de Azevedo, Lafaeth Claudio Fidelis, Laryssa Noronha do Carmo, Laura Honório Texeira, Lidiane Veras Texeira, Luiz Henrique Bezerra da Silva, Matheus Ferreira Alves, Matheus Oliveira Juvêncio, Murilo Henrique Sousa, Pamela Pereira Alves, Prissila Nunes de Araujo, Samara Alves da Silva, Sonally Nathalia de Freitas, Taina Garcia de Araujo, Tarsila Souza de Arruda Santos, Vanessa da Silva Leite, Vanessa Fernandes de Sousa.
Ao professor Wellington Medeiros - que também fez as pinturas que aparecem no filme/vídeo - meu entusiasmado aplauso, percebo que ao mobilizar e incentivar seus alunos para mergulharem num trabalho como esse é um professor que ultrapassa os cômodos limites da simples cátedra, se inserindo no seleto grupo dos educadores.
A Alma da Feira pode ser visto na íntegra aqui abaixo:
2 comentários
O novo filme/vídeo A Alma da Feira encerra a Mostra de Cinema do 48º Festival de Inverno no Cineclube Lívio Wanderley como uma criação que entoa a liberdade de expressão em imagens e palavras, aqui traduzidas de forma excelente. Uma união almática de gentes que fazem acontecer o melhor, a partir de suas singularidades, produzindo entusiasmo e uma verdadeira feira de linguagens e memórias de imensa riqueza simbólica. Primeiramente os Feirantes, Lourdes Ramalho, Roberto Coura, Moncho Rodrigues, Bráulio Tavares, Eneida Agra Maracajá, Mica, Romero Azevedo, Isis Oliveira de Azevedo, Rômulo Azevedo, os estudantes da disciplina Semiótica e Semântica do Produto do Curso de Design da UFCG , Artista plástico e Professor coordenador do Projeto, Wellington Gomes de Medeiros, Numa Ciro, Hermeto Pascoal, Adon do Museu Vivo do Nordeste, Sandra Suassuna e muitas outros plurais estiveram de várias formas presentes. Obrigada a todos e todas pelo banquete, pela alma da feira, pela noite memorável ! Obrigada, Romero.
ResponderExcluirA feira sempre merece uma (re) visão! E que felicidade dessa nova perspectiva surgir de um curso diferente dos cursos padrão de audiovisual, como Jornalismo e Arte e Mídia.
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