Numa Ciro, Now and Then

novembro 04, 2023

Woke up this morning/ Singing an old, old Beatles song... cantava Caetano naquele emblemático e tão distante ano de 1972.

Hoje, ouvindo a nova/velha canção dos Beatles, Now and Then, no arrepiante videoclipe de Peter Jakson “Agra” (os da minha geração vão entender o apenso), lembrei imediatamente o disco velho/novo lançado por Numa Ciro em 2020 (a data cronológica não quer dizer nada porque é um disco de ontem, de hoje e de amanhã também).

O disco de Numa, disponível em todas as plataformas de áudio, é música, é poesia, é cinema, é cordel, é teatro, é literatura, é surrealismo, é impressionismo, é história, é memória, é o eterno presente em suas metamorfoses de ontens e amanhãs. Em síntese: é um disco que tem a perenidade beatles. Here, There and Everywhere.

Registro seminal de toda uma caminhada sob o sol e sobre o sol (The Long and Winding Road), encontrei nas nuanças das treze faixas do álbum os assimétricos planos gerais de Antonioni, os jump-cuts de Godard, as emboladas de Dedé e Antônio da Mulatinha, o cão emplumado do João que não gostava de música, os acordes dissonantes do outro João que era a própria música, o beijo de Rock Hudson em Gina Lollobrigida numa vila em Portafino na Itália... antropofagia sideral.

Dado isso, tem ainda Dada Isso, música de Jean Claude Burg, onde a letra de Numa canta cartões nonsense ao nosso olhar comum / instantâneas impressões / nuvens cubistas surreais / feras soltas, cavalo de pau/vacas sorrindo e já não riem mais... caleidoscópica viagem, miragem onírica que faz a ponte com a tropicália lá atrás: Viva a banda, da, da / Carmem Miranda, da, da, da, da.

Psicodélica, deliciosa batida pop de Numa e Lan Lanh, é daquelas músicas que a gente ouve e sai logo dançando por aí como se fossemos uma Ginger Rogers, um Fred Astaire, um Lennie Dale, um Jorge Danel, uma Rita Moreno/Ariana DeBose.

Em Vigésima Hora, parceria com Tania Christal, Numa Ciro evoca o onipresente cinema: preste atenção no detalhe / na vigésima hora / quando o vento levou / ah, essa noite / infinitas vezes, reprises / já decorei esse filme...

Xote À Primeira Vista, mais uma letra de Numa com música de Tibor Fittel, embora a interpretação da autora seja de fino trato, a música merece muito uma interpretação/gravação de Flávio José (alô Flávio!) pois é um xote de responsa, letra e música combinadas com esmero, poesia e ritmo convidando o par para rodopiar no salão, grudadinhos, whoah, we danced through the night / and we held each other tight, como inspira a letra da canção: o xote vai dizer / o que eu não disse / nem a mim nem a você / no xote a gente conversa à vontade / faz amor, mata saudade / da saudade que vai ter.

No variado caldeirão de ritmos e estilos do disco, e aqui me veio agora a imagem daqueles mostradores de bombons, vistosos compartimentos de vidro que giravam exibindo a diversidade de doces no balcão da bodega (que delícia!), tem também um fado no melhor estilo Amália Rodrigues/Antônio Zambujo/Carminho; trata-se de Rua da Saudade (Numa Ciro, José Miguel Wisnik) com participação vocal de Jussara Silveira, como todo bom fado, é melodramático, assentado em imagens pretéritas, diáfanas, desejando ver outra vez: saudade fez da quimera / uma razão de existir.

A Feira Grande de Campina Grande é uma grande obra-prima (assumo a hipérbole), finalmente uma música descrevendo nosso maior patrimônio afetivo/histórico/cultural/comercial fica ombro a ombro ao lado da famosa Feira de Caruaru de Onildo Almeida. Não, não é exagero algum de minha parte, é simples constatação. Evidentemente que pelo tempo em que foi feita, pelas repetidas execuções radiofônicas, pela gravação de Luiz Gonzaga feita em 1957, A Feira de Caruaru está mais presente no imaginário do povo, mas a música de Numa, um filme em forma de canção, pela riqueza descritiva da letra, pela melodia mágica do bruxo albino Hermeto Pascoal, há de chegar aos corações e mentes dos ouvintes e ali estabelecer morada ficando para sempre. Quem viver verá (assumo o clichê).

Muito além do gênero gramatical, a arte sim é mulher,  como afirma Numa na viagem estelar, across the universe, em nova parceria com Lan Lahn que diz: ao sentimento ela deu um coração / e inventora do amor e da razão / a arte é mulher.

Não esqueci a capa, um belo pastel de Hildebrando de Castro, uma expressão kabuki, teatro popular que embora dominado hoje pelos homens foi fundado por uma mulher, uma sacerdotisa de nome Okuni, no século 16.

O baile de Numa Ciro, João Donato and a little help from her friends é (muito) divertido, já ensaio uns passinhos.

Come together!

3 comentários

  1. Acurada tessitura, rebobinando filmes, decifrando imagens visuais, acústicas, velhas canções nascidas hoje, colando figuras, lá e quase aqui. Que lindeza!!! Numa Ciro é mesmo fenomenal, sideral, aguça todos os sentidos removendo sínteses, abrindo círculos, sua arte é beijo ardente de vida, planos ondulados, pulsantes. Texto e poesia, lá e aqui se lembram, para nunca se esquecer que somos muito mais reais nos sonhos, na arte, na feira viva, na musicalidade, somos repente, embolada, surpresa. Ainda que mais não seja antes de depois, ao mesmo tempo nunca e sempre.

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  2. Os presentes do presente! Viva Numa!! Viva Beatles!

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