Apontamentos Sobre Sombras e Assombros
outubro 29, 2023O titulo acima é do belo texto que o querido amigo, psiquiatra, homem da cultura e das artes, Edmundo Gaudêncio escreveu e nos enviou. Fala Edmundo!
“Retratos Fantasmas,
o deslumbrante documentário de Kleber Mendonça,
trazido a público por Romero Azevedo e exibido no Cineclube Memorial, como toda Obra de Arte, comporta o ver e o enxergar.
Vemos um lindo documentário.
Mas nele enxergo Baudelaire e Walter Benjamim.
Nele percebo três conceitos caros a Baudelaire, Benjamin e Kleber Mendonça:
Flaneur, Voyeur, Blasé:
Flaneur, flanar, passear; Voyeur, espiar; Blasé: deixar-se tomar pelo "spleen", pela melancolia que cedo dá lugar "ao não mais perceber". Claro: enorme diferença entre a Melancolia de Baudelaire e Benjamin: neles, a Melancolia era a tristeza do já perdido. Hoje, melancolia é depressão: estar-se triste pelo que se não sabe o que foi perdido, pelo não se saber onde estar ou aonde ir -- exatamente porque, no perdido, perdemo-nos nós -- sem que saibamos sequer o que denominamos de "nós"!
Kleber Mendonça, em Retratos Fantasmas, dá rosto a esse vazio:
onde antes cinemas, alegria... prédios tombados, casas vazias.
Vazios.
A memória necessita de suportes materiais: uma foto, por exemplo.
Esmaecida pelo tempo, nela não reconhecemos quem sorria.
O cinema é um guardião de memórias -- a cada vez em que um cinema é fechado, perdidas histórias: do filme exibido e das mãos dadas, dos enamorados, a que o filme assistam!
Em Retratos Fantasmas, o retrato de um fantasma e o fantasma do retrato:
o que é, já não é mais -- embora sendo!
Contra tudo e contra todos, o Cinema sobreviverá!
Porque estas as funções do cinema:
dar visibilidade ao invisível; tornar visível o dizivel; e inesquecível o que se poderia esquecer.
Em Retratos Fantasmas, a História Oral (matéria estudada pela mãe do Diretor) dá lugar à História Visual.
Filme melancólico, sem dúvidas.
Melhor: filme nostálgico (apenas para recordar a palavra inventada por um médico, Johannes Hofer que, em 1688, inventou essa palavra, neologismo composto por "nostos", lugar perdido -- e "algia", dor: a tristeza profunda de se não poder voltar jamais ao lugar de onde se partiu.
Entre nós, "banzo" - palavra africana derivada de "banza", casa de nascença. Tristeza de jamais poder retornar ao lugar onde a felicidade morou!
Toda beleza contém sempre melancolia, segundo Edgar Alan Poe:
No agora, o ontem; a ausência do ontem, no amanhã!
A Romero Azevedo, meu eterno agradecimento -- pela exibição de Retratos Fantasmas -- e por nos dizer que, sem ontens, jamais existirão amanhãs!
Fraterno Abraço”.
P.S. O filme “Retratos Fantasmas” estará disponível na Netflix a partir de 2 de novembro próximo. Confiram.
4 comentários
Poxa, grande texto! O que será do Século XXI, sem os suportes materiais e, consequentemente, memória?
ResponderExcluirChega a ser emocionante. Cine Clube, debates, texto de Edmundo Gaudêncio... uma overdose de cultura na caretice atual de Campina Grande
ExcluirRomero Azevedo, Eneida Agra Maracajá, Caio Márcio, texto de Edmundo Gaudêncio, Baudelaire, Benjamin, Filme de Kleber Mendonça, projeção de Retratos Fantasmas, introjeção de palavras vertentes do simbólico que faz laço social, contornam os vazios, que salvam, nossos retratos que falam no cineclube Lívio Wanderley. Comentário de Walter Tavares! Emocionante! Memorial! Amanhã tem mais.
ResponderExcluirObrigada, Romero Azevedo. Este espaço de cinema com exibição e conversa depois é um lugar paradisíaco. Você criou e cuida da nossa felicidade cinéfila. E ainda nos oferece este espaço para nos deliciarmos com seus textos e de outros pensadores como este maravilhoso de Edmundo Gaudêncio.
ResponderExcluir