Quem tem medo de filmes com final feliz? Digo logo que não tenho. Sou de uma geração fortemente influenciada pelo mundo cinematográfico e extracinematográfico, nós acreditávamos que os filmes, as músicas, as peças e os livros tinham o poder de mudar o mundo. Não tinham. Mas, pelo menos, aprendemos que os filmes, as músicas, as peças e os livros tinham o poder de nos mudar, e como nos mudaram!
Em paralelo aos filmes que nós achávamos que iam mudar o planeta, tinha os filmes bem menos pretenciosos que procuravam apenas entreter por duas horas, duração de uma sessão na época, os espectadores. Eu sempre gostei dos filmes “cabeça” - vi O Homem de Alcatraz com 11 anos de idade - e dos filmes “alienados” (era assim que a crítica carimbava os filmes para entretenimento). Os finais desesperançosos do neorrealismo italiano e do cinema novo brasileiro, por exemplo, me comoviam tanto quanto os finais água-com-açúcar dos filmes com Sandra Dee, Doris Day, Rock Hudson, Cyl Farney e Doris Monteiro.
Lembro que em 1969, depois de vermos impactados O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro de Glauber Rocha no Capitólio, fomos no domingo fazer ao vivo na Rádio Caturité o programa semanal Sétima Arte. “Hollywood quer filmes cor-de-rosa, nós queremos filmes cor-de-sangue!”, bradou um colega na abertura do programa. Ato continuo coloquei “Oh Darling” do disco Abbey Road dos Beatles que tinha comprado com meu irmão Romulo no dia anterior. Quer dizer, eu concordava com aquela frase, mas também concordava com os apelos de Paul, berrando desesperado para a mulher amada: Oh, darling. Please believe me / I'll never do you no harm / Believe me when I tell you / I'll never do you no harm. Nada mais explícito, se levarmos em consideração que a cena mais violenta, hiperviolenta diria, de O Dragão..., é justamente Odete Lara (Laura) apunhalando mais de 30 vezes seu amante Hugo Carvana (o delegado Mattos), a música de Lennon e MacCartney fazia o contraponto (com uma certa ironia hei de concordar) àquela abertura sanguinolenta. Era, e é, a minha permanente luta para sair dos extremos, da caixinha dos “ismos” em todas as suas ramificações.
F1: O Filme (título em português) tem 2 horas e 35 minutos de duração, mas é daqueles filmes que você não percebe a passagem do tempo. Tudo funciona perfeitamente como num filme de James Bond. Não gosto de corridas de Formula 1, nem no auge de Ayrton Senna eu via , mas a versão cinematográfica dessas corridas “arrastaram meu olhar como um imã” como diz a canção.
Kosinski, que além de dirigir, escreveu o roteiro original juntamente com Ehren Kruger, é um cineasta de grandes sucessos: Top Gun: Maverick, Os Irmãos Grimm, Oblivion, Homens de Coragem, entre outros.
Embora tenha cenas espetaculares das corridas, inclusive imagens impressionantes feitas com uma câmera construída especialmente para o filme (fotografia do chileno Claudio Miranda), F1 não é um filme sobre corridas. Os astros reais das pistas estão lá, Fernando Alonso, Lewis Hamilton, Charles Lecrerc, Max Verstappen e outros, mas observem que esses pilotos são apenas coadjuvantes, aparecem numa cena ou outra, mas sempre em segundo plano. F1 é um filme sobre os dilemas, as fraquezas, a coragem, os vacilos, os acertos e as decisões - certas e erradas - que temos de enfrentar. São temas universais que envolvem todos os seres humanos e servem de base para os dramas, as tragédias e as comédias - da literatura ao cinema - que compõe parte importante das nossas vidas.
Brad Pitt (numa atuação soberba, o cara não é só fina estampa, é ator mesmo) é Sonny Hayes, um piloto veterano que continua nas pistas não por necessidade financeira, mas por necessidade, vamos dizer assim, existencial (o último plano e última fala do filme, reafirmando essa escolha, é arrepiante). Esse personagem fictício me lembrou um personagem da vida real que teve a vida contada no cinema, é o lutador de boxe americano Jim Braddock (Russel Crowe) no filme Cinderella Man de Ron Howard, 2005 (aqui no Brasil, A Luta Pela Esperança). Braddock foi da glória ao ostracismo nos ringues, mas quando todo mundo apostava que ele estava definitivamente acabado, o veterano lutador ressurge das cinzas e reescreve com garra e determinação sua história, tornando-se um exemplo de resistência e esperança para milhares de americanos afundados na grande depressão, econômica e psicológica, dos anos 1930.
Voltando ao F1, Sonny é contratado por uma escuderia de porte médio onde um velho amigo, Rubén Cervante (Javier Bardem) ex- piloto, dirige a equipe. O jovem piloto Joshua Pearce (grande atuação de Damson Idris) está sendo preparado para ser a estrela da escuderia, a chegada repentina de Sonny desestabiliza emocionalmente o jovem piloto e aí surge uma não tão velada disputa entre eles, na verdade entre Jeshua e ele porque Sonny não está nem aí para esse duelo de egos.
A partir daí o filme só cresce, com diálogos bem escritos e situações plausíveis e aplausíveis. A cena onde o “velho” piloto responde só com monossílabos às perguntas de um badalado jornalista numa coletiva de imprensa é hilária e filosófica ao mesmo tempo. Noutro momento, jogando cartas com o jovem Joshua, Sonny perde a parada para um insignificante par de cartas que Jeshua joga na mesa (uma dupla de 5), depois ficamos sabendo o que realmente aconteceu.
Enquanto Jeshua segue fielmente as orientações do seu relações públicas (Abdul Salis) que vive em busca de likes e engajamento nas redes, Sonny chama tudo isso de “ruídos externos” e não dá a mínima para essas badalações que os pilotos são praticamente obrigados a participar antes e depois das corridas.
Outra personagem marcante é Kate McKenna (uma atuação sensível de Kerry Condon), a engenheira projetista dos carros da escuderia. A cena em que Rubén Cervante, o chefe da equipe, bate na porta do apartamento dela no hotel em que estão hospedados para saber se Sonny está por lá é uma das mais engraçadas do filme.
Os bastidores dessas bilionárias disputas onde o elemento humano é o que menos conta e a moral e a ética variam dependendo apenas dos dólares envolvidos, são mostrados sem sensacionalismo ou estardalhaço, aparecem naturalmente como são.
Etarismo, resiliência, cinismo, mentira, vaidade, transitoriedade, ciúme, persistência, tudo que abarca a busca interior pelo sentido da vida também compõe o roteiro dessa superprodução que envolveu mais de 300 profissionais e foi gravada em locações reais em Las Vegas, Abu Dhabi, Monza, Daytona, Budapeste, México, Japão e Bélgica.
Sim, o final é feliz, mas nada daqueles finais previsíveis, se trata da felicidade da alma.
Se você gosta de diversão com reflexão, F1 é o filme, não perca.




