Mais um ano começando e nós publicando a tradicional lista dos 10 melhores filmes vistos no ano que passou. Diferentemente das listas desse gênero que privilegiam os lançamentos do ano findo, a nossa tem como critério de “lançamento” os filmes que vi pela primeira vez. Já falei anteriormente, e repito, que filme “novo” é todo filme que você não viu ainda, não é mesmo? Então esse é o critério da minha lista: filmes que vi pela primeira vez no ano findo, sem importar o ano em que foi produzido. A ordem da lista é apenas numérica, não quer dizer que o primeiro é melhor que o segundo nem o décimo é menos bom que o nono. Também é importante dizer que o fato da lista ter apenas dez filmes, quando na verdade vimos muitos outros bons filmes, muitos deles comentados aqui no blog, é somente uma convenção tradicional. Os filmes escolhidos tratam de temas que me parecem importantes, circunstancias ainda não superadas pela humanidade: ambição, violência, inveja, crueldade, intolerância, racismo, solidão, traumas, desumanidade. Mas também tratam de resistencia, esperança e redenção. Dito isto, vamos aos filmes:
Ainda Estou Aqui - Brasil, 2024
Foi sem dúvida, o grande lançamento do ano. Pela temática de alta relevância para nós brasileiros nestes tempos sombrios onde meliantes fardados e civis sem-razão ainda insistem em conspirar para destruir a democracia e impor um reinado de terror como foi de 1964 a 1985 (pesquisa do instituto Datafolha feita agora em dezembro anota que 62% dos brasileiros preferem a democracia como regime político, minguados 8% querem a volta da ditadura, são pessoas ineptas para viver no mundo e a única coisa que conseguem fazer na sua mesquinhez existencial é tentar amargar a vida das pessoas normais). O filme também marcou o reencontro do público brasileiro com o nosso cinema, um reencontro emocionado e vibrante com direito a aplausos calorosos no final das sessões. Mais de 2 milhões de espectadores nos cinemas, ingresso pago, filas, reservas antecipadas, como não se via há muito tempo num mercado dominado por Hollywood. Prêmios internacionais consagram este belo filme no exterior, tem até chance no Oscar (o que, sinceramente, é o de menos importância para mim). Comentamos esse filme numa postagem no dia 9 de novembro, confiram lá.
Irmandade da Sauna a Vapor - Estônia, 2023
A diretora Anna Hints nos mostra um verdadeiro ritual de purificação praticado por mulheres estonianas numa sauna a vapor no meio de uma floresta cercada por neve por todos os lados. Você não fica sabendo quem ali é atriz profissional e quem não é, a linha que separa o documentário da ficção é rompida totalmente. Hints, ao colocar sua câmera no interior da sauna, também é parte desse ritual de descarga emocional, dessa limpeza psicológica dos traumas e dores existenciais acumuladas. Um filme surpreendente, belo, trágico e libertador ao mesmo tempo.
O Preço da Verdade - EUA, 2019
O título original é Dark Waters (Águas Escuras), trata-se de um filme com uma temática mais que atual: o envenenamento das pessoas por parte das grandes corporações fabricantes de produtos químicos, no caso aqui a multinacional Du Pont. O diretor Todd Haynes vai fundo no acompanhamento da luta de um jovem advogado, Robert Bilott, interpretado por Marck Ruffalo, para processar a poderosa corporação responsabilizando-a pelo envenenamento de pessoas e animais na zona rural de Cincinnati-Ohio. Temas como responsabilidade social, moral e ética empresarial, impunidade e corrupção, saúde e descaso, explodem na tela. A certa altura do filme, o advogado Bilott diz: O sistema é manipulado. Eles querem que acreditemos que ele nos protegerá, mas isso é mentira. Nós nos protegemos. Nós protegemos. Ninguém mais. Nem as empresas, nem os cientistas, nem o governo. Nós. Verdade cristalina.
Zona de Interesse - UK/Polônia, 2023
Baseado no romance homônimo de Martin Amis, o filme conta a história real do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, e sua esposa Hedwig, vivendo tranquilamente uma vida dos sonhos com a sua família em uma casa com jardim ao lado do campo de extermínio mais famoso do nazi-fascismo. Eu sempre digo e repito: os filmes sobre ditaduras, de qualquer matiz ideológico, têm de ser feitos, exibidos e debatidos sempre. Esses horrores perpetrados por desalmados (sem alma) disfarçados de “humanos” são inaceitáveis em todos os aspectos morais, políticos, ideológicos, sociais e humanos. O mínimo que podemos fazer para que essas atrocidades não se repitam é denunciar sempre, é lembrar sempre, é punir severamente quem flerta com essa barbárie ignominiosa. Ditaduras nunca mais!
Síndromes e um Século - Tailândia, 2006
Escrito, produzido e dirigido por Apichatpong Weerasethakul (nome difícil de escrever e mais ainda de pronunciar), realizador tailandês, 54 anos, que já fez até agora, entre curtas e longas, 58 filmes, Síndromes e um século é um filme de contemplação. As imagens captadas por Sayombhu Mukdeeprom (outro nome com o mesmo nível de dificuldade de escrita e pronúncia) são belíssimas e de uma leveza zen. O filme me lembrou, na estética, Tartovsky e Kiarostami, mas não é uma imitação, é uma forma de filmar. Alguns diálogos são repetidos em cenas levemente diferentes e isso me remeteu a Persona a obra-prima que Bergman fez em 1966. Não procure nesse filme um drama estruturado nas formas convencionais que estamos acostumados a ver porque não vai encontrar. Síndromes e um século, com esse título desconcertante, é um exercício sobre os seres humanos e seu mundo observados pela lente de uma câmera. Tem aquele toque budista, sem ser religioso, que conduz o olhar e isto não é muito fácil de ser digerido por nós ocidentais. O plano de abertura, mostrando um bambuzal açoitado pelo vento, mas em total harmonia com ele, me lembrou um balé, um pas de deux, vento-árvore, como um prólogo do que vamos ver a partir dali.
Folhas de Outono - Finlândia, 2023
Uma das mais gratas surpresas desse ano que terminou. O diretor finlandês Aki Kaurismäki, também roteirista do filme, nos apresenta um melodrama moderno sobre as almas solitárias que habitam esse vasto planeta e buscam sua outra metade. A atriz Alma Pöysti e o ator Jussi Vatanen interpretam um par dessas almas, Ansa e Holappa, que se encontram num bar-karaokê nos fins de semana. O final chapliniano alimenta uma esperança no porvir, apesar de tudo.
Feche os Olhos - Espanha, 2023
Uma obra-prima sobre o cinema, a vida, o oficio dos artistas, o presente que nos cerca.O diretor basco Víctor Erice, que já tinha nos impactado com O Espirito da Colmeia (1973), apresenta agora esse drama bem construído onde cada cena se encaixa sem excessos ou faltas. Fotografia impressionista (Valentín Álvarez) que valoriza a trama, direção de arte (Curru Garabal) impecável, edição funcional de Ascen Marchena e trilha sonora de Federico Jusid. O elenco, encabeçado por Manolo Solo, Jose Coronado e Ana Torrent, é soberbo.
Tantura - Israel, 2023
No IMDB (Internet Movie Data Base) a sinopse é precisa: Na guerra de 1948, centenas de vilas palestinas foram despovoadas. Os israelenses chamam de "A Guerra da Independência". Os palestinos chamam de "Nakba". O filme examina uma vila - Tantura e por que "Nakba" é tabu na sociedade israelense.
Não devemos confundir o povo judeu com os sionistas que os governam. Esse documentário, feito pelo cineasta israelense Alon Schwarz, só tem um compromisso: a verdade. Schwarz traz para o centro do debate um dos episódios mais sangrentos desse massacre sem fim imposto aos palestinos pelos sionistas, um crime de guerra perpetrado no começo da fundação do atual estado de Israel, em 1948. Uma aula de história e humanismo que só descontenta aos desalmados (sem alma) genocidas de sempre.
Atiraram no Pianista - Espanha, 2023
É um longa de animação com desenhos realistas que reproduzem fielmente os personagens entrevistados. O tema é o desaparecimento e assassinato do pianista brasileiro Francisco Tenório Junior ocorrido em Buenos Aires-Argentina em 1976. Tenório, que acompanhava Vinicius de Moraes e Toquinho num show, foi preso por engano, foi confundido com alguém pelos militares da ditadura Argentina. Desfeito o engano, a embaixada brasileira foi comunicada e concordou com o assassinato dele para evitar repercussões negativas para a ditadura brasileira (que não havia feito nada durante os 9 dias em que ele estava desaparecido). O roteiro é de filme de terror, mas infelizmente isto aconteceu mesmo (saibam mais aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ten%C3%B3rio_Jr.).
Os cineastas espanhóis Javier Mariscal e Fernando Trueba fizeram esse documentário na forma de desenho animado para contar esse episódio pouco lembrado ocorrido durante as abomináveis ditaduras da América Latina. É um filme necessário, especialmente para os jovens que não viveram esse horror das ditaduras militares, um tempo sombrio de sangue e dor que espalhou morte e terror na Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai. Ditaduras nunca mais!
P.S. O único disco solo de Tenório Junior, Embalo, gravado em 1964, está disponível nas plataformas de música.
Ervas Secas - Turquia, 2023
Um filme longo, 3h17, mas com aquela qualidade dos grandes filmes que fazem com que você não sinta o tempo passar, o tempo nesse filme não é incomodo, é matéria-prima. Em seu nono filme o diretor turco Nuri Bilge Ceylan conduz um elenco afiadíssimo e homogêneo em sua qualidade, mas por sua extensão dramática e importância dentro da trama temos de destacar a atriz Mervé Dizdar cuja presença em cena é marcante, inclusive dando uma nova dimensão impecável a uma personagem amputada fisicamente (não tem uma perna) nesse drama sobre as fraquezas, contradições, conflitos morais e racionais de um grupo de seres humanos inseridos num contexto especifico nos confins da Turquia. A fotografia de Cevahir Sahin e Kürsat Üresin, merecedora de todos os prêmios e aplausos, sublinha o drama ambientado num clima de inverno desolador. A condição humana em permanente reflexão num filme que compensa com sobra todo tempo investido para desfrutá-lo.
Essa é a minha lista dos 10 melhores filmes vistos em 2024, e você já fez a sua?