Chico César, Zeca Baleiro, Django e Trinity ao Arrepio da Lei
junho 01, 2024Foi lançado no dia 1° de março desse 2024 do século 21 o disco (ainda se usa essa palavra ou foi cancelada?) “Ao Arrepio da Lei”, um trabalho em dupla do paraibano Chico César com o maranhense Zeca Baleiro, ambos bambas do ritmo, letra, melodia, harmonia e canção.
São 11 músicas abordando temas contemporâneos que vão da diáspora existencial brasileira/mundial, passando pelos abomináveis haters, o calor que amadurece as pessoas no verão, os dislikes das onipresentes redes sociais, tudo isso num entusiasmo pulsante nos convidando a aglomerar. Essas músicas podem ser apreciadas nas plataformas digitais de streaming, escolha a sua, coloque os fones, volume a gosto e já está.
No meio desse potente repertório, uma música, a primeira que dá nome ao disco, me fisgou logo, rápido como Franco Nero ou Gianni Garko sacando suas pistolas e matando 7 de uma vez (sem fritar bolinho).
Ela fala de cinema, de poesia, de descoberta, do beijo no aconchego da sala escura, mas fala também de revolta, de vingança, de rebelião e justiça social. Um recado mais que atual, necessário. Especialmente nestes tempos sombrios de desmandos mundiais a clamar uma insurreição planetária contra os tais donos do poder e seus apaniguados. A letra é assentada nas imagens e lembranças dos chamados spaghetti-western, os faroestes produzidos na Europa, notadamente na Itália e Espanha , entre os anos 1960 e 1970 do século passado, filmes onde os caubóis empoeirados, barba por fazer, roupa surrada, chapéu idem, cavalgavam para fazer justiça, a maioria das vezes “ao arrepio da lei”, como reza a bela canção, e a letra prossegue em sincronia poética e diacronia histórica : “Sangue nos olhos do caubói corre o destino / Como nos sonhos no meu tempo de menino / Que a fome e a sede Pecos volte pra matar”.
Esses filmes revelaram ao mundo nomes de diretores de altíssima, e original, mis-en-scène, como Sergio Leone (Três Homens em Conflito, Era Uma Vez no Oeste, Por Um Punhado de Dólares e outros clássicos absolutos desse subgênero), Duccio Tessari (que lançou em 65 o personagem Ringo, encarnado pelo jovem ator Giuliano Gemma aka Montgomery Wood, no surpreendente Uma Pistola para Ringo), Sergio Corbucci (entre os 12 faroestes que fez, bastam apenas 3 para colocá-lo no pedestal dos gênios do cinema popular no século 20: Django, Os Violentos Vão Para O Inferno e O Vingador Silencioso), Giorgio Ferroni aka Calvin Jackson Padget (que estreou no western em 1965 com o grande sucesso O Dólar Furado, depois de uma longa carreira dirigindo épicos “peplum” na Cinecittà em Roma), Ferdinando Baldi (fez o curioso O Justiceiro Cego, em 1971, com o beatle Ringo Starr empunhando pistolas em vez de baquetas no deserto da Almeria na Andaluzia espanhola à guisa de Texas norte-americano). Ringo não foi o primeiro pop star do rock a empunhar pistolas num spaghetti-western, o francês Johnny Hallyday fez o mesmo, em 1969, no filme O Especialista - O Vingador de Tombstone, sob a direção do mais que especialista Sergio Corbucci.
Gianfranco Parolini aka Frank Kramer um verdadeiro criador de filmes para o grande público, havia lançado em 1968 outro personagem de grande repercussão: Sartana, o pistoleiro todo vestido de preto, interpretado por Gianni Garko, o filme era Se Encontrar Sartana, Reze Pela Sua Morte, um estrondoso êxito de bilheteria que consagrou o personagem no panteão dos heróis do faroeste europeu. Na sequência, em 1969, Parolini criou outro personagem de grande impacto popular: Sabata, que deu novo folego e ressignificou a carreira do veterano ator Lee Van Cleff.
Para entender a verdadeira febre que esses filmes provocaram, basta dizer que até Pier Paolo Pasolini, como ator ao lado de Lou Castel e Mark Damon, sob a direção de Carlo Lizzani, participou de um deles, o já tido como cult desde o seu lançamento Réquiem Para Matar, de 1967.
Esses neowestern, se é que se pode chamar assim, também atraíram para a Itália muitos atores americanos, consagrados ou não, atores que, depois desses bang-bang, tiveram suas carreiras reinventadas com amplo reconhecimento e merecido aplauso por parte da crítica e do público. Entre eles, Clint Eastwood, Henry Fonda, Charles Bronson, Joseph Cotten, Robert Woods, Dan Duryea, Eli Wallach, Woody Strode e Jason Robards. Também é digno de nota a participação do ator espanhol Fernando Sancho, que criou um tipo de vilão, sarcástico, debochado, às vezes até engraçado, em mais de 40 faroestes. O polonês Klaus Kinski é outro que emprestou sua estampa e se eternizou como um dos “homens maus” nesses bang-bang.
As mulheres foram mostradas nesses filmes de uma forma bem diferente da matriz americana, se em Hollywood eram passivas e chorosas, nos spaghetti-western eram ativas, às vezes até cruéis e implacáveis, nunca subjugadas. Claudia Cardinale, como a viúva Jill McBain sedenta de vingança em Era Uma Vez no Oeste e Françoise Fabian como a destemida Virginia Pollicut em O Especialista - O Vingador de Tombstone, representam bem esse modelo feminino do western a la italiana.
No rol dos personagens masculinos arquétipos desses faroestes que viraram de cabeça para baixo o sacrossanto “cinema por excelência” dos americanos - ao fim e ao cabo Hollywood cedeu e tentou imitar os spaghetti - estão Keoma, Sartana, Trinity - sequência que consagrou os italianos Terence Hill e Bud Spencer - e Pecos, do filme Meu Nome é Pecos de 1966 (ambos personagens citados na letra da canção), Starblack (da produção ítalo-germana de 1966 também conhecida como Johnny Colt) e muitos outros.
Dois artistas brasileiros protagonizaram no faroeste europeu: a atriz Norma Bengell fez o principal nome feminino, contracenando com o americano Joseph Cotten, em “Os Cruéis” (1967), western politizado de Sergio Corbucci sobre o inconformismo de um coronel sulista com a rendição para o norte na Guerra Civil; o ator brasileiro Antonio de Teffé aka Anthony Steffen fez nada menos que 25 faroestes, encarnando personagens icônicos a exemplo de Apocalipse Joe, Django, Garringo, Sabata, Arizona Colt, Ringo, Johnny Texas, Shango e Gentleman Jo.
A letra da música Ao Arrepio da Lei, inspiradíssima, traz uma estrofe que liga o cinema à natureza (aqui lembrei de Humberto Mauro que definia o cinema como “cachoeira”), o menino cinemeiro do sertão ao hoje combativo artista Chico César, diz ela: “E aquela sede de justiça e de vingança / Era cacimba em que minha alma de criança / Eu mergulhava para o mundo enfrentar”. Essa influência cresceu junto com ele, acompanhando-o até os dias de hoje, e ele canta: “Ao arrepio da lei, me criei contra o sistema / Vender poemas virou minha profissão / Com a viola a tira colo, sou problema / Carrego lema de lutar contra a opressão”. O cantor-compositor se vê metaforicamente na pele daqueles caubóis, livre para lutar contra os opressores: “Um Franco Nero sem algema / Que aos céus blasfema contra os donos do sertão”. Essa afirmativa nos deixa claro que aquele tempo gasto nas concorridas sessões de cinema não foi em vão, ela comprova também aquilo que já foi dito: o cinema não muda o mundo, mas pode mudar você.
A melodia de Ao Arrepio da Lei tem uma pegada de balada de faroeste (aliás, as trilhas desses westerns eram uma atração à parte, Ennio Morricone foi o gênio da raça), explicitada também nos versos “Um Trinity que vai cantando sua balada”, e acrescenta: “Um zorro zonzo e um tanto tonto, cuja espada / É a palavra derramada pelo chão”. Essa ambivalência atemporal provocada por um delicioso jogo de palavras une o Zorro e o seu inseparável companheiro, o índio Tonto, dos faroestes e gibis americanos dos anos 1950 (retomado em 2013 pelo diretor Gore Verbinski) com o Zorro da capa e espada, criação do escritor Johnston McCulley em 1919, que também foi adaptada para o cinema nos anos 1940, posteriormente na televisão numa série de grande sucesso produzida pelos estúdios Disney no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 e em duas refilmagens mais recentes, uma de 1975 com Alain Delon e a outra de 1998 com Antonio Banderas.
A maioria dos filmes citados estão disponíveis em DVD, Blu-ray e streaming em cópias restauradas e remasterizadas em 4K. Confiram.
Encerro parafraseando o poeta: viva o cinema, minha alma sempre a gritar!
2 comentários
Gostei muito dessa relação "rebelde" do Spaghetti e a rebeldia no mundo moderno. Dica excelente!!
ResponderExcluir“Eu não tenho nem roupa pra esse Verão”. Canções quentes, palavras aquecidas de sentido em imagens da telona que fazem o corpo vibrar, conexão imediata. Heróis. “A vida é de quem aviva/E não de quem quer o jogo ganhar”. A vida não é um jogo e “o poder vai virar pó”. Passei a semana ouvindo. “Não me sinto só”. Beije-me antes (linda Canção) Chico, Zeca, vamos aglomerar. Obrigada, Romero.
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