Estrela de Lata: Um Western de Ouro

maio 01, 2024


Preferi o título original, The Tin Star, ao ridículo título em português (que não encontra nenhuma relação com o filme) título esse que me abstenho de citar em respeito à capacidade cognitiva dos meus queridos leitores.

O filme é uma produção de 1957, dirigida por Anthony Man, com Henry Fonda e Anthony Perkins nos papeis centrais.

Não se trata de uma obra-prima, é simplesmente um filme bem feito, mas admiravelmente bem feito.

Logo na abertura ficamos sabendo que o que vem pela frente, embora seguindo uma narrativa clássica, linear, vale a pena esperar, é uma abordagem criativa, muito acima do artesanato padrão da indústria. A fotografia em deslumbrante preto-e-branco, obra de Loyal Griggs, envolve de cara o espectador pela beleza e funcionalidade. A música de Elmer Bernstein é a música de Elmer Bernstein para western, o roteiro de Dudley Nichols (No Tempo das Diligencias, O Delator, Levada da Breca, O Galante Aventureiro...), baseado numa estória de Barney Slater e Joel Kane, toca em temas delicados para a época como o massacre de índios (nesse ponto, pelo menos no nosso Brasil varonil, está atualíssimo), o preconceito contra os mestiços (que é um tipo de racismo) e a forma desprezível como o sistema trata os agentes da segurança pública (idem no Brasil de hoje).

Logo após a apresentação dos créditos, quando a ação do filme realmente começa, a partir de um belo travelling que acompanha a chegada do forasteiro Henry Fonda na cidade, são 38 planos encaixados em 6 minutos e 8 segundos. Alguns podem até achar pouco se compararem, por exemplo, com os 78 planos enfiados em 52 segundos na cena do assassinato no banheiro, em Psicose de Alfred Hitchcock. A comparação não procede, a cena de Psicose é poesia, a abertura do western de Mann é pura prosa (aqui essas duas categorias devem ser entendidas no campo das imagens). Antes que comecem as especulações que só existem para roubar nosso tempo e energia, explico logo qual é a minha base para classificar como poesia tão horripilante cena: uma vez perguntaram ao célebre repentista Pinto de Monteiro como ele definia um poeta, com a sagacidade que o identificava, o gênio da cantoria respondeu na hora “poeta é aquele que tira de onde não tem e bota onde não cabe”. Ora, foi exatamente isso que Hitchcock fez, tirou 78 planos do exíguo espaço de um banheiro e colocou nos também exíguos 52 segundos de filme. Se isso não for poesia, não sei o que é.

Quando fez A Estrela de Lata, Mann estava na plenitude de sua maturidade criativa, tinha 51 anos (morreria dez anos depois, em 1967, com apenas 61 anos), e construiu um filme onde a imagem conduz a narrativa, como vimos na sequência de abertura, e os diálogos são acessórios, palavras que grifam o que as imagens nos contam. É cinema em seu estado puro.

A paisagem está para o western assim como os dois átomos de hidrogênio e o solitário átomo de oxigênio estão para a água. Anthony Mann soube como poucos enquadrar homens, animais e paisagem em seu oitavo western. John Ford transformou o Monument Valley no deserto de Utah (cenário que, segundo o jornalista Ruy Castro, foi apresentado a ele por John Wayne, mas o monumental ego de Ford nunca reconheceu isso e jamais disse “thank you” para o também monumental Wayne) numa espécie de cenário padrão de seus melhores western; mas enquanto Ford utiliza a paisagem como moldura pictórica na composição dos enquadramentos, Mann integra a paisagem na narrativa e faz dela um elemento a mais para o desenrolar da trama (como por exemplo na cena em que Fonda usa galhos secos, arrancados da paisagem, para forçar os fora-da-lei a saírem do esconderijo, esconderijo esse localizado numa caverna da paisagem). Os animais, não só os indispensáveis cavalos, também protagonizam junto com os humanos essa aventura rural, quando Fonda se encontra a primeira vez com um menino (Michel Ray) que também é parte importante da estória, esse menino segura um pombo nas mãos, mais adiante é um cachorro que entra em cena para dar sua colaboração no desenvolvimento da ação. Tem ainda um cavalo que puxa a charrete do velho médico (John Mclntire numa interpretação impecável) enquanto ele dorme, o animal está tão integrado àquela vida que já sabe o caminho de casa de cor. Um bestiário assim só lembro de ter visto nos desenhos clássicos de Disney, mas são desenhos.

A sub trama do filme trata de um tema que acompanha a humanidade ao longo da sua longa caminhada sobre esse belo planeta e sob o sol na cabeça: a exploração do homem pelas elites encasteladas no poder. Fonda é um ex-xerife que largou tudo quando sofreu na própria pele a crueldade desse sistema que nos rege há séculos, o império das elites endinheiradas, e ao que parece, se continuarmos permitindo, vai permanecer nos oprimindo por séculos à frente. No momento em que Morgan Hickman (esse é o nome do ex-xerife) mais precisava de ajuda para salvar a mulher e um filho recém-nascido ouviu de um banqueiro a máxima desalmada “amigos, amigos, negócios à parte”. Imediatamente caiu na realidade mercantilista como quem cai do oitavo andar no fosso do elevador que deveria estar ali, mas não estava. Hickman percebeu, tardiamente, que nem a nobre missão de pôr a própria vida em risco para proteger a tal sociedade, inclusive o banqueiro que lhe disse não, serviu como aval para o empréstimo que suplicava. A partir daí transformou uma ingênua vocação num negócio rentável, virou um caçador de recompensas. Essa nova postura diante da lei e dos homens o leva a enxergar o mundo com uma maturidade quase sempre roçando a ironia: na cena em que o jovem e idealista xerife Anthony Perkins vai assinar a autorização para o pagamento de uma recompensa pela morte de um procurado “vivo ou morto”, súbito ouvem-se tiros na rua, o ingênuo e diligente xerife se levanta rapidamente da escrivaninha e se dirige para fora do escritório para ver o que se passa, Fonda o repreende dizendo “espera, nem assinou a autorização”. Perkins não o atende e acaba se envolvendo numa situação que quase lhe custa a vida, é salvo por Fonda que lhe diz “desculpe a intromissão xerife, é que você ainda não assinou a minha autorização“, a frase sela a nova visão de mundo do ex -xerife Fonda e fecha com essa refinada ironia, a bem construída sequência onde a ação é apenas um detalhe. Essa intervenção de Fonda, salvando o xerife da iminente morte, me lembrou John Ford que traria, 5 anos depois de The Tin Star, uma situação semelhante no seu O Homem Que Matou o Facínora, a diferença é que no filme de Anthony Mann é apenas uma sequência, no de Ford é a razão de ser de todo o filme.

Jean-Luc Godard observou certa vez: “imagine uma cena, um homem cruza com uma mulher numa calçada e trocam um olhar. Se ela é feia ou bonita, se caminha elegantemente ou não, quem vai dizer é o diretor. Se eles vão se apaixonar, quem vai dizer é o montador/editor”. A montadora de A Estrela de Lata, Alma Macrorie, nos diz que sim, Henry Fonda e Betsy Palmer, a mãe do menino com o pombo na mão, vão se apaixonar logo no primeiro encontro, na primeira troca de olhares, em dois planos que duram algumas frações de segundos a mais na tela, confirmando a observação de Godard.

A mis-en-scène desse filme é de uma delicadeza e de uma simplicidade que só fazem crescer nossa admiração por ele. Não há excessos, só o necessário. Na cena em que Fonda conversa com Palmer depois do jantar, ela costurando uma roupa de encomenda, ele limpando o rifle que agora é seu ganha-pão e lembrando do filho e da mulher que perdeu “ao mesmo tempo“, e ela revelando que o pai do seu filho era um índio (que foi assassinado, saberemos mais adiante, por ser índio), é uma aula de atuação, posição da câmera, diálogo, montagem; não é esteticismo, é fluência narrativa no mais alto estilo.

Outro momento brilhante dessa joia do western, é quando o jovem xerife Perkins diz ao veterano Fonda que quer ser bom o suficiente para manter a estrela no peito, o ex- xerife ensina: “então aprenda sobre os homens, o revolver é apenas uma ferramenta que você pode dominar se tiver jeito, difícil é o ser humano”. É uma lição precisa, objetiva, direta, que parece ter saído da boca de um monge budista.

A sequência do duelo entre o xerife Ben Owens (Anthony Perkins) e o valentão Bart Bogardus (Neville Brand, perfeito) é uma das sequencias do gênero mais primorosas que vi até hoje no cinema americano, nenhum estardalhaço, um duelo sem contracampo, só o essencial.

Completam o excelente elenco de The Tin Star, Mary Webster como a noiva do xerife Perkins que insiste com ele para devolver a estrela de lata e preservar a vida, Lee Van Cleff ainda como coadjuvante, mas já chamando a atenção pela estampa e desempenho, James Bell é o juiz Thatcher e ainda Russell Simpson, Howard Petrie, Jack Kenney e Richard Shannon.

Encerro com um toque: os trechos da trama citados aqui não se configuram em hipótese alguma como os temíveis spoilers. Aprendemos com Lisbela (sim, a do prisioneiro) que num filme o que importa não é o que acontece, mas “como” e “quando” acontece, portanto relaxem e vejam o filme para confirmar isso posto agora.

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