Dio, Come Ti Amo

junho 20, 2024

Dio, Come Ti Amo foi talvez o filme mais exibido pelo Cine Capitólio em toda sua história, do lançamento às incontáveis reprises foram mais de uma centena de sessões.

O amigo, fotógrafo, Aladim Monteiro, de Caicó-RN, me disse que esse é um dos três filmes que carrega na memória afetiva em sua relação inicial com o cinema. Dio, Come Ti Amo também proporcionou o primeiro contato do amigo jornalista Ribamildo Bezerra, ainda criança, com o encantamento das imagens gigantes em movimento, foi no belo Cine São Francisco na cidade de Patos-PB, um cinema de rua que a força da grana um dia construiu e agora destruiu para sempre.

Não vi esse filme na época do lançamento nem em suas infinitas reapresentações, na minha adolescência cineclubista (inocente, radical e nada resiliente) eu não passava nem em frente ao cinema que estivesse exibindo um filme como Dio, Come Ti Amo. Num certo sentido essa atitude era válida, uma contestação a um tipo de filme que na nossa visão sincera, mas equivocada, não trazia nenhuma contribuição para a evolução cultural dos espectadores, em contrapartida nos privou de ver muita coisa boa que trazia nas suas entrelinhas recados importantes não só na sua forma, mas essencialmente em seu conteúdo. É o caso, por exemplo, de Dio, Come Ti Amo.

O que se segue abaixo é apenas uma impressão que tive do filme, impressão que não se pretende definitiva nem única.

Dio, Come Ti Amo é estrelado pela cantora e atriz italiana Gigliola Cinquetti e o americano Mark Damon, com um elenco de coadjuvantes bem acima da média, já começa de forma arrasadora com Gigliola (esse também é o nome da personagem), no esplendor dos seus 19 anos, cantando a terna Non Ho L'Eta (Per Amarti) (Não Tenho Idade (Para Amá-lo)), ela acompanha a si mesma com um violão, está na beira de uma piscina olímpica, cercada por amigas, jovens atletas italianas e espanholas que disputam um torneio internacional de natação em Barcelona.

Do ponto de vista da cinematografia, da mis-en-scène, o filme é bem realizado, o roteiro de Ennio De Concini, Giovanni Grimaldi e Eliana de Sabata conta uma história por demais conhecida, mas a forma como é apresentada mantém o espectador preso à trama (o enorme sucesso de público é a comprovação disso), a fotografia em preto-e-branco (trabalho de Cecilio Paniagua) é funcional e faz com que não se sinta (eu pelo menos não senti) ausência de colorido, a montagem/edição de Franco Fraticelli é empolgante, especialmente na sequência final. A trilha sonora dispensa apresentações.

O filme também lança um olhar sobre a geografia, a arquitetura e até mesmo a antropologia na Espanha. Tem uma sequência belíssima em que eles passeiam por Barcelona e Luís (Mark Damon) mostra a catedral traçada por Gaudí, ele diz “é poesia em forma de arquitetura”, quer dizer não é uma coisa tipo cartão-postal, há uma interpretação das formas da catedral. Os cartões-postais até aparecem no filme, mas como eles são: apenas cartões-postais.

A sequência do passeio deles em Barcelona inclui uma cena num bairro cigano, Luís faz questão de dizer “ciganos verdadeiros, não aqueles para turista ver”, uma observação no campo da antropologia social destacando uma etnia dos povos ciganos, povos que foram duramente perseguidos pelo nazismo com o apoio de Franco. Ao destacar a pequena dançarina zingara o filme sublinha a resistência desses povos que permanecem vivos, com um futuro, apesar da tentativa de extermínio patrocinada pelo nazi-fascismo na segunda das guerras mundiais.

Essa sequência continua num lugar, espécie de um parque a céu aberto, onde num cenário em escala real cada rua representa uma região da Espanha, o parque é uma nítida tentativa da ditadura Franco de encobrir os históricos conflitos espanhóis mostrando num cenário fictício uma diversidade dentro da unidade, algo tipo somos um só povo, um só país, quando na verdade as regiões separatistas do País Basco e da Catalunha (região onde fica a cidade de Barcelona) desmentem esse cenário artificial. O filme reforça essa crítica, a noiva de Luís, Angela, (Micaela Pignatelli), comenta em tom irônico que era especialista em fazer resumos curtíssimos, sem nenhuma profundidade, sobre a geografia espanhola na escola. O comentário alude ao cenário visitado: embora reproduza fielmente em seu exterior as diversas regiões da Espanha, é esvaziado em seu conteúdo porque tenta camuflar a realidade sócio-política-separatista do País. Num segundo momento, no mesmo local, agora sós, Luís tenta integrar Gigliola ao cenário vazio que representa a Andaluzia, “o paraíso dos apaixonados”, diz ele. Gigliola se recusa a entrar no jogo.

A cena, só na aparência comum, traz em seu interior uma provocação pois nunca é demais lembrar que o filme é de 1966 e a Espanha completava 30 anos algemada pela ditadura (1936-1973) do generalíssimo Francisco Franco (1892-1975) cuja sombria efigie pode ser vista no selo dos cartões-postais exibidos em primeiro plano no filme.

Como todo melodrama que se preza, Dio, Come Ti Amo tem momentos de humor, inesquecíveis canções e aquele suspense que acelera o coração da plateia.

Depois de muitas idas e vindas, um mal-entendido põe tudo a perder e estilhaça em mil pedaços um namoro que vinha mais que dando certo. O aristocrata espanhol Luís, cego de ciúme, larga tudo e resolve voltar para Barcelona sem nem ouvir a versão de Gigliola para a cena que acabara de presenciar.

Atônita com a brusca atitude do seu recém namorado, Gigliola parte para o aeroporto de Nápoles numa tentativa de deter Luís para pôr tudo em pratos limpos.

Ao chegar na torre de controle do aeroporto, ela pede ao responsável pelo tráfego aéreo um microfone para se comunicar com o avião prestes a levantar voo, inicialmente ele hesita, mas diante da insistência dela ele cede. Gigliola toma o microfone na mão, o homem diz para ela falar alguma coisa, ela balança a cabeça como quem diz “não tenho palavras”, pausa; súbito ela começa a cantar a belíssima canção Dio, Come Ti Amo. A partir daí a montagem/edição nos proporciona um dos duelos mais emocionantes e ricos em seus significados implícitos que eu já vira num filme. De um lado a aparentemente frágil presença humana ancorada na força indestrutível da arte, do outro lado o aparentemente forte poder material assentado em uma das suas inequívocas conquistas: o gigante de ferro que voa embora seja mais pesado que o ar. Gigliola começa a cantar na desesperada tentativa de deter a decolagem cujos procedimentos já foram iniciados, ela canta: Nel cielo passano le nuvole / Che vanno verso il mare / Sembrano fazzoletti Bianch i/ Che salutano il nostro amore. Aquela estonteante canção, aquela voz apaixonada, preenchem todo o espaço de forma invisível, suave, mas essencialmente necessária como se fossem o próprio oxigênio que também não vemos, nos chega suave, e é imprescindível para nossas vidas.

Imediatamente, como se a sinapse planetária tivesse toda convergido para aquele aeroporto, a canção vai dominando o tempo e o espaço, e o embate se acentua. Ela continua cantando e a força bruta do gigante de ferro reage com a fúria das hélices que começam a girar, ela não desiste, canta mais um verso, e o avião começa a taxiar na pista rumo à decolagem. A sequência é brilhante, além do suspense que é um elemento importante numa narrativa melodramática, tem o embate dialético entre a força do humanismo da arte em favor do amor e a força do frio e abominoso materialismo que naquele momento é o veículo, no sentido lato, que separa os amantes. A aeronave prossegue no rumo da cabeceira da pista para decolar, a canção termina, o avião avança... se querem saber como termina tudo isso o filme tem de ser visto porque só nele está a resposta.

Essa sequência é poderosa, inclusive hoje, porque trata de um tema vital para todos que é a questão do amor. Dio, Come Ti Amo consegue a proeza de ser a um só tempo realista, porque trata do tema concreto da quase impossibilidade de uma relação entre pessoas de classes sociais diferentes, e fantasia por tudo de conto de fadas que contém.

No ano em que o filme estreou por aqui, 1968, os Beatles haviam lançado a canção All You Need Is Love (Tudo Que Você Precisa É Amor), a música é como um hino, inclusive abre com os acordes da Marselhesa o grande hino popular da revolução francesa, para mim é a grande canção dos Beatles, um resumo de toda trajetória deles que começou lá atrás sempre insistindo na importância do amor. Lembro ainda Pelé se despedindo do futebol no Cosmos de Nova York em 1977 gritando para o mundo: Love! Love! Love! A própria tradição cristã diz que o principal mandamento é o amor, diz também Deus é amor. O Budismo ensina: Quando as pessoas se amam, a distinção, os limites, as fronteiras entre elas começam a se dissolver, e elas se tornam uma com a pessoa que amam.

Caetano Veloso disse numa entrevista à Folha de S. Paulo, edição de 25 de março de 1982, o seguinte: “Não pretendo deixar que os miolos duros da tecnocracia vençam os miolos moles do sub-romantismo”. Ele estava falando de outra coisa, mas se fosse sobre Dio, Come Ti Amo também se encaixaria como uma luva de seda pura.

Então Dio, Come Ti Amo nesse sentido é um filme revolucionário porque traz como temática essa questão importantíssima do amor. É uma Cinderela às avessas já que quem salva o príncipe das garras do dragão, em nome do amor, é uma plebeia, mulher, forte, determinada, corajosa, que usa como espada a própria voz e a canção romântica como escudo.

Vendo o filme lembrei de Super-Homem - A Canção de Gil, música inspirada por um filme, só que diferentemente da aventura dirigida por Richard Donner, no melodrama de Miguel Iglesias é a mulher quem tem o protagonismo e altera o curso dos acontecimentos, nesse caso a estrofe final da música seria trocada, ficando mais ou menos assim: Quem sabe Gigliola venha nos restituir a glória / Mudando como uma deusa o curso da história / Por causa da mulher. Mulher entendido como a humanidade, substantivo feminino.

Confiram.

2 comentários

  1. tenho essa dívida, além de Candelabro Italiano, para sanar! me pego pensando o quanto que o espectador de cinema mudou - mas não muito: quem acompanha as novelas turcas e os doramas buscam esse amor romântico, inocente, mas que acaba perpassando outras subjetividades, discursividades e representações da nossa época.

    ResponderExcluir
  2. Que Bela Cosa! Agora fiquei sabendo porque Dio Come Te Amo é Unforgettable, como canta Nat King Cole. Uma mostra do sinal inconfundível do amor como fenômeno universal: O (des) encontro, o mal-entendido. Em Algodão de Jandaíra, Estremadura, Andaluzia ou Pompéia, o amor começa com o mal-entendido, seu selo de garantia, enche de coragem, mas dá paúra. E assim revelado, Solitude, da romântica e musical língua italiana, conhecida também como a língua do amor, se separa da solidão, na sutura, na emenda, onde as palavras escapam das imagens fixas, da Roda Gigante, do Gigante de Ferro, do Trem Fantasma, do Calhambeque, da maldade da sociologia (como revelou Edmundo Gaudêncio em sua tese de Doutorado) que a alquimia do cinema (re)vela e o decifrador de imagens em sua análise, mais uma vez reprisa, no Babitóliocapilônia, Dio, Come Ti Amo. Inesquecível.

    ResponderExcluir

Posts Relacionados