Zaquia Jorge, Estrela de Madureira, Estrela do Brasil

abril 15, 2024

Madureira chorou, Madureira chorou de dor / Quando a voz do destino, obedecendo ao Divino / A sua estrela chamou. No Carnaval do ano de 1958 do século 20 (eu tinha acabado de completar 5 anos), qualquer emissora de rádio da cidade que você sintonizasse estava tocando esse samba composto por José Prudente de Carvalho e Julio Leiloeiro, interpretado por Joel de Almeida (disponível nas plataformas de música). Eu não entendia nada do que a letra dizia, mas a melodia me emocionou e me emociona até os dias de hoje. Muito tempo depois fiquei sabendo quem era aquela personagem que havia inspirado aquela samba belo-trágico que também dizia aquela gente, que mora na zona norte / Até hoje chora a morte, da estrela do lugar. Essa estrela era a bailarina/atriz/vedete/empresária Zaquia Jorge.

Zaquia havia morrido prematuramente, afogada na praia da Barra da Tijuca aos 33 anos de idade, no dia 22 de abril, uma segunda-feira, do ano anterior.

Sessenta e sete anos depois dessa tragédia que comoveu o Brasil, especialmente a Capital Federal, na época o Rio de Janeiro, o jornalista e escritor Marcelo Moutinho lança pela editora Record uma biografia dessa artista, Estrela de Madureira - A Trajetória da Vedete Zaquia Jorge, Por Quem Toda A Cidade Chorou. O livro consumiu 5 anos de pesquisas, um verdadeiro e minucioso garimpo em arquivos públicos e privados, jornais, revistas, filmes, documentos, além dos depoimentos de testemunhas que conviveram e trabalharam com Zaquia.

Essas histórias precisam ser contadas para serem conhecidas e, principalmente, lembradas. Personagens como a atriz e vedete popular Zaquia Jorge são muitas das vezes os grandes responsáveis pela criação e manutenção de espaços para a arte e a cultura nos lugares onde o poder público dá as costas, onde o vento faz a curva ou o diabo perdeu as botas como diz a sabedoria popular. Esse era o caso da zona norte do Rio de Janeiro dos anos 1950, embora situada em plena Capital da República era ignorada completamente pelas chamadas autoridades constituídas, o primeiro teatro da zona norte, o hoje lendário Teatro Madureira (depois Teatro Zaquia Jorge), foi pensado, montado e mantido por iniciativa própria de uma mulher que seguia à risca, na prática, o mantra entoado anos depois por Milton Nascimento: Todo artista tem de ir aonde o povo está.

O escritor e jornalista Ivan Lessa (1935-2012), que entre muitas outras coisas integrou o time do famoso semanário O Pasquim, dizia, com muito acerto, que o brasileiro de quinze em quinze anos esquece tudo o que aconteceu nos quinze anos anteriores. Esse livro de Marcelo Moutinho vai de encontro a essa máxima perversa, porém verdadeira, que nos coloca na posição de um povo ingrato, mal-agradecido com aqueles que dão corpo, sangue, suor e alma para manter de pé nesse país tão desigual e, infelizmente, cada vez mais dessensibilizado, um dos quatro pilares do saber humano, a indispensável arte.

A biografia escrita por Moutinho transcende o aspecto histórico/memorialista e penetra no âmago de uma artista que lutou com todas as suas forças (e economias) para dotar um desprezado subúrbio carioca com nada mais nada menos que um teatro! Mais que um equipamento cultural, o teatro, segundo a atriz contemporânea Carolina Henriques, é entrega, dedicação, humildade, amor, respeito, é magia, é energia, é a troca, é o jogo, é o outro, é o conjunto: é um todo. Essa definição da arte de Téspis traduz também a alma de Zaquia, uma mulher que antes de tudo era uma artista, no sentido mais completo da palavra.

O livro tem 181 páginas e é escrito numa linguagem que torna a leitura leve e muito atraente, 66 ilustrações, entre fotos do arquivo pessoal da estrela, cartazes dos espetáculos montados e estrelados por ela, cenas de filmes, documentos, manuscritos, capas de revistas e jornais, compõe o material etnográfico que mapeia não só a vida pessoal da artista, mas também o ambiente cultural, com destaque para a Zona Norte do Rio e o bairro de Madureira, onde ela convivia e trabalhava duro pela descentralização (esse termo não era usado na época) de uma arte até então limitada aos palcos do Centro e da zona sul da cidade.

Encerro convidando você para ler o livro e lembro os versos do samba que ficou em segundo lugar na disputa da música que embalaria o desfile da escola Império Serrano, de Madureira, com enredo homenageando Zaquia Jorge no Carnaval de 1975. O samba, Estrela de Madureira, composto por Acyr Pimentel e Ubirajara Cardoso, foi lançado por Roberto Ribeiro no Lp Molejo que ele gravou em 1975 (depois mais de uma dezena de outros artistas também gravaram a música). Uma das estrofes do samba sintetiza com emotiva perfeição o legado pioneiro dessa brava, sensível e ousada artista brasileira e a eterniza no panteão politeísta popular das deusas e deuses da arte: Mesmo com o palco apagado, apoteose é o infinito / Continua estrela, brilhando no céu.

1 comentários

  1. Ótima referência. Experiência e transmissão são fundamentais para o resgate da memória como possibilidade de consciência crítica. Obrigada, Romero.

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