Mombojó, Carne de Caju, Bom Que Só
fevereiro 15, 2024Começo pela capa, um belíssimo desenho solar (de Rafael Olinto) que me fez até sentir o delicioso perfume do caju, fruta que coloco entre as dez melhores do universo.
A capa me levou ao disco. Um primor, ou melhor uma delícia também. Já tinha ouvido muito falar do Mombojó, mas nunca tinha ouvido um disco deles. Esse Carne de Caju, lançado no último 26 de janeiro, é todo centrado na obra de Alceu Valença. Dos artistas nordestinos que surgiram na mídia no começo dos anos 1970, três eu classifico como os mais originais, os mais inventivos, possuidores de um estilo inconfundível, é o trio ABZ (ordem alfabética): Alceu, Belchior, Zé Ramalho.
Num passado recente as gerações que vieram depois, e aqui cito a turma do manguebeat, por exemplo, não souberam ou não quiseram reconhecer a linha evolutiva que une... Januário/Gonzaga/Alceu..., fazendo com que grande parte da juventude da época ignorasse essa importante contribuição de Valença que deu continuidade, de forma nova e originalíssima, a essa rica herança da nossa música popular. Com Carne de Caju, a geração Mombojó desfaz esse equívoco e apresenta aos jovens de hoje parte de um imenso repertório que há meio século inaugurou um novo caminho para a música popular brasileira produzida no Nordeste, um caminho assentado numa longa tradição pretérita que não pode (nem deve) ser abstraída dessa história.
Li num jornal, não me lembro qual, alguém dizendo que esse é o primeiro trabalho “não autoral do Mombojó”. Como se “autoria” fosse apenas de músicas e letras. É não. Autoria também se manifesta na forma de tocar os instrumentos, nos arranjos, e na interpretação do repertório. Mombojó coloca sua assinatura nas oito faixas desse disco que recomendo de cara para quem estava ansioso por algo de novo sob o sol da música popular.
A faixa de abertura, a eletrizante Estação da Luz, recebeu um tratamento heavy com o peso das guitarras, baixo e bateria impulsionando a letra poética, cheia de cores que impregnam o verão.
Amor Que Vai, a música seguinte, tem uma pegada acirandada que convida o ouvinte imediatamente à dança, talvez para esquecer aquele amor que leva seus teréns/pra não ter motivo de voltar.
A terceira faixa é difícil de esquecer, ela fica gravada (para sempre?) no coração e na mente. O Romance da Bela Inês fala de uma personagem da nossa- triste-história recente. A burguesa que amava o capitão (aos mais distraídos um alerta: não deixem que a patente os confunda, o capitão em tela é Carlos Lamarca), a mesma que teve medo do “condor” (consultem no oráculo o verbete “Operação Condor”). Aqui a autoralidade - neologismo que inventei agora - da banda ganha um reforço, um tempero, bem original: o sotaque do pernambucano da litorânea Recife, sotaque ausente na versão do agrestino Alceu da semiárida São Bento do Una.
Tomara, pregaria em forma de canção, ganhou uma batida forte que sintoniza o Mombojó diretamente com o afrobeats, a novíssima fusão de ritmos locais, com o pop internacional, surgida principalmente em Lagos na Nigéria e em Acra, capital de Gana, e tem à frente artistas como Rema, Ayra Starr, Tiwa Savage e Omah Lay. Essa sintonia mostra que o prisma da banda está aberto ao mundo, sem limitações ou barreiras. Além disso, o timbre eletrizante da música, à parte, a sensível poesia da letra, nos puxa para a dança como se fossemos os rodopiantes derviches da Turquia.
Chuva de Cajus, quinta faixa do disco, tem uma batida shakundun, sonoridade inventada por Renato Barros, dos Blue Caps, para traduzir a musicalidade dos primeiros Beatles para o Brasil (é um elogio, curto, respeito e reconheço a importância da banda Renato e seus blue caps no cenário pop brasileiro). A opção por essa batida se distancia bastante do arranjo original de Alceu, que é quase um fado. Aqui temos mais um exemplo da originalidade autoral do Mombojó nesse disco que tinha tudo para ser um simples cover, mas absolutamente não é.
Ouvindo Carne de Caju em nenhum momento senti a falta dos celebres riffs da guitarra de Paulo Rafael, ingrediente inseparável das gravações de Alceu. Ao dizer isto não estou cometendo nenhuma heresia, afinal se trata de um disco do Mombojó e a banda consegue reler com cristalina singularidade um repertório plural que habita nossa memória afetiva.
(Abro uns parênteses para lembrar a versão de Cat Power para (I Can't Get No) Satisfaction, a cantora americana tirou não só o lendário riff de Keith Richard, mas também o estribilho escrito por Mick Jagger, e não senti a falta).
Carne de Caju abre esse ano de 2024 como uma grata surpresa, um sopro rejuvenescedor, voando tão leve/Um poema de éter/Poema de pássaro como dobra o sino de ouro de Alceu Valença.
Confiram nas plataformas de música.
3 comentários
ótima resenha, professor! fiquei curioso pelo álbum do Mombojó. Coincidentemente não ouvia a banda desde a morte de Rafael Torres, filho de Prof. Barbosa, de Arte e Mídia, com um problema no coração. Tristes caminhos.
ResponderExcluirOrigami, é assim que leio esse texto. Em cada dobra um poema, um pássaro, uma sonoridade nova, uma imagem, uma história, uma flor, uma dança. E o filme rodopiante dos derviches da Turquia. Tomara que chova Chuvas de cajus. Belas canções. Obrigada, Romero.
ResponderExcluirQue bom conhecer, agora, Monbojó, Carne de Caju, a partir do seu toque cultural ao lembrar que ainda há criatividade na música popular brasileira, nordestina e tendo por base as composições de Alceu Valença. Valeu, Romero.
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