Retratos de Kleber e Retratos de Nós Mesmos

setembro 08, 2023


Vi Retratos Fantasmas, novo filme de Kleber Mendonça Filho, na quinta-feira, 31 de agosto, no Cine Banguê no Espaço Cultural, em João Pessoa. É uma pena que o filme não seja exibido em Campina Grande, o “Cine” São José controlado pela Funesc não tem nem nunca teve um projetor digital e tela profissionais para cinema e ninguém sabe dizer se terá um dia; o Cinesercla do shopping Partage, como 99% do parque exibidor brasileiro, não têm o menor interesse em exibir filme nacional, imagine um produzido no Nordeste. Cota de tela já!

Falei em Campina Grande porque além de contar com um expressivo número de espectadores para esse tipo de cinema (as sessões semanais do Cineclube Memorial comprovam isso), a cidade é citada duas vezes no filme: a primeira diretamente numa foto do Centro de Recife onde aparece um imenso cartaz do Banco Industrial de Campina Grande, emblemática instituição financeira que ajudou Glauber Rocha a produzir Terra em Transe, Miguel Borges a fazer O Barão Otelo no Barato dos Milhões e financiou as primeiras cópias de Dona Flor e Seus Dois Maridos para o seu grande lançamento nacional em 1976; a segunda referência a Campina Grande no filme é bem indireta, mas não deixa de ser uma referência: na sequência do Uber (uma alusão explícita ao cinema do iraniano Abbas Kiarostami), a música que o motorista ouve é Rise com Herb Alpert, o mesmo Herb Alpert que com o seu trompete e a banda Tijuana Brass servia de prefixo para o início das sessões do Cine Capitólio na segunda metade dos anos 1960 (a música tocada era El Presidente).

Digressões à parte, continuemos com o filme. Retratos Fantasmas junta memória e história, real e imaginário, coletivo e intimo numa sensível crônica sobre a cidade amada tendo como fio condutor parte das mais de 25 salas de cinema, salas de rua, existentes no Recife, no pretérito-perfeito, no pretérito-mais-que-perfeito e até mesmo no pretérito imperfeito.

Eu pessoalmente me emocionei com aquela avalanche - Recife Frio - de imagens de arquivo muito bem restauradas e editadas. Está lá o Cine São Luiz, inaugurado no ano em que nasci, e no qual entrei a primeira vez em 1968 para ver a 25ª Hora, drama ambientado na segunda guerra mundial dirigido por Henri Verneuil com Anthony Quinn e Virna Lisi, o mesmo São Luiz que há 70 anos (no dia 3 de outubro de 1953) foi palco de um assassinato na calçada na porta de entrada no dia da pré estreia de O Canto do Mar de Alberto Cavalcanti (apesar do crime a sessão transcorreu como o previsto) foi lá também onde a produtora e atriz olindense Aurora Duarte lançou em 1960 o seu A Morte Comanda o Cangaço, dirigido por Carlos Coimbra.

No Art Palácio (surpreendente a revelação de suas origens ligadas a UFA de Goeebbels e Hitler, Fritz Lang e Murnau, esses dois cineastas não eram nazistas, eram expressionistas) vi a estreia de Jeanne Moreau gemendo de loucura e de torpor, prazer e pavor, preguiça e suor nos canaviais alagoanos, lembro ainda das sessões matinais no sábado nos anos 1970, onde vi O Grande Ditador de Chaplin, revi O Mágico de Oz e tantos outros. No final da sessão por volta do meio dia rumávamos para a Livro 7, com escala no Beco da Fome (carne guisada com macaxeira). Na Livro 7 comprei em 77 a edição de bolso espanhola de El Cine Según Hitchcock, a tradução em português do livro de Truffaut ainda não existia.

Nunca entrei no Moderno. Mas fui ao Espinheirense uma vez para ver Um Biruta Em Órbita Jerry Lewis dirigido por Gordon Douglas, um detalhe interessante: o bilheteiro vendia o ingresso, ele mesmo recebia o ticket na portaria e depois subia para a cabine para operar os projetores (a cobertura era de zinco e no meio da sessão caiu um toró daqueles de verão recifense, daí para a frente ninguém mais ouviu o som do filme); no Boa Vista um dos que lembro é Deixe-me Viver da dupla Arthur Pen/Arlo Guthrie (com comentários pós sessão no Mustang) e o “cinema de arte” Coliseu em Casa Amarela, onde vi Teorema de Pasolini (impacto total na época) e Privilégio (1967) um drama abordando a onda da música pop no Reino Unido e seus bastidores invisíveis para os fãs com a belíssima Jean Shrimpton sob a direção de Peter Watkins. Esses cinemas tão marcantes para mim ficaram de fora do filme.

Fui ao Veneza ver o lançamento de A Noite Americana de Truffaut e frequentei semanalmente no início dos anos 1970 aquele edifício, também cenário de Retratos Fantasmas, onde ficavam as distribuidoras de filmes, ia pegar na sexta o filme a ser exibido pelo Cineclube de Campina Grande no sábado e domingo e devolvia a cópia em 16 milímetros na segunda. O primeiro que alugamos lá foi O Evangelho Segundo São Mateus de Pasolini, da Art Filmes( tenho dúvida se a Art Filmes ficava mesmo naquele prédio).

A sequência em VHS mostrando o trabalho do senhor Alexandre Moura projecionista do Art Palácio é uma das que mais gosto. Eu que frequentei, e ainda frequento, tantas salas Brasil afora nunca tive contato com os projecionistas, esses operários hoje em extinção, responsáveis maiores pelo sucesso da exibição. Alexandre, in memoriam, é um personagem real. Bem diferente do Alfredo do Cinema Paradiso que é apenas uma representação dramatizada de um operador profissional. A cabine asfixiante sem ar condicionado o obrigando a deitar no chão para aliviar o calor (e a câmera colada nele nos faz sentir esse calor torturante), a overdose de O Poderoso Chefão que nem Coppola aguentaria enfrentar, e a poética e triste chave de lágrimas que sintetiza todo o segundo bloco do filme, fixaram para sempre esse personagem em minha retina, coração e mente.

A certa altura na narração Kleber diz, e repete, amo o Centro do Recife; e quem não ama o Centro do Recife? Acredito que basta passar por lá uma única vez (e eu passei muitas) para ama-lo desesperadamente como no poema de Vinicius, embora saiba que no tempo presente a barra é pra lá de pesada.

Jomard Muniz de Brito, Antonio Cadengue, Amin Stepple, Fernando Spencer (que bela foto do querido amigo), Geraldo Pinho… nomes eternos do cinema em/do Recife. Senti a falta de Geneton e Celso Marconi, ausências injustificáveis.

A trilha sonora é outro destaque do filme, com canções que complementam/comentam o texto. Uma grata surpresa para mim foi a Evocação, versão gravada ao piano pelo próprio compositor Nelson Ferreira em 1958. Não conhecia essa preciosidade, vivendo e aprendendo.

Os retratos e imagens animadas de Kleber, guardadas por anos e agora expostas ao público, revelam um passado que explica o presente, não só do cineasta, mas também da cidade do Recife e por extensão do Brasil (os cupins que devoraram a casa da vizinha e quase devoram o edifício Aquarius comprovam isso). As imagens me fizeram lembrar de Alma Corsária de Carlos Reichenbach, onde ele utiliza, em outro contexto, trechos de filmes amadores gravados pelo pai. Essas imagens de Retratos Fantasmas, em grande parte simples arquivos familiares que depois de restauradas e editadas no filme assumem outra dimensão, a dimensão do cinema. É aí que reside a grande diferença, é como aquela rua cenário do filme O Som Ao Redor que Kleber diz que primeiro queria filmá-la com a iluminação noturna dela mesma, as luzes vindas dos postes. Depois ele mesmo se deu conta que não ficaria bom e resolveu iluminar cinematograficamente e a rua passou a ter, como as imagens de arquivo pessoais, a dimensão do cinema (essa cena me tocou particularmente e toda vez que lembro do filme a primeira imagem que me vem é essa).

Encerro esse passeio proustiano-kinomatográfico (cabotino?) lembrando um verso de Caetano Veloso em reverencia poética a Sonia Braga (atriz visceralmente ligada ao atual, e competente, cinema pernambucano): como é bom poder tocar um instrumento.

10 comentários

  1. Parabéns pelo excelente trabalho, e pelo vasto conhecimento sobre Cinema no Brasil

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Excelente análise! Verdadeiro caleidoscópio de imagens e associações que (re) encontram o calor da vida nas palavras, a imensa dimensão do cinema que conecta imagens e palavras e uma preciosa lista de grandes filmes. Lembro da cena final da Vigésima Quinta Hora onde temos um destaque para o retrato. Retratos são Fantasmas, histórias singulares e coletivas que desenrolam as montagens do tempo como contratempo. Esperando a oportunidade de assistir. Cota de tela já!

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  4. Legal a citação do banco Industrial de Campina Grande. Eu tenho como relíquia um cofrinho de ferro que esse banco fornecia aos clientes.

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  5. ROMERO AZEVEDO é o CINEMA em PESSOA. Obrigada, homem cinematográfico. Passei pela minha vida toda lendo este texto. Morei em Recife vi todos esses filmes e era cinéfila e amava estas salas de cinemas. Eu tinha uma tia, EREMITA, que era cinéfila. Todos os dias ela ia ao cinema e foi com ela que aprendi a amar a sétima ARTE. Campina Grande precisa ter você na Secretaria de Cultura cuidando das Salas de Cinema, depois de revitalizá-los, na verdade ressuscitá-los. Vamos lutar pelo Cinema em Campina Grande.

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