Hollywood Deita No Divã e Expõe (Parte De) Suas Vísceras

fevereiro 23, 2023

O cinema americano deitou no sofá e resolveu contar tudo ao público analista? Nem tanto, nem tão pouco.

O conflito entre realizadores e produtores sempre presente nessa indústria que movimenta milhões de dólares, foi dissecado por Godard no belo e trágico O Desprezo (1963). Neste filme, uma autocrítica sobre o próprio fazer cinematográfico, incluindo seus diretores, Godard demole a mística que cerca a produção de um filme e mostra toda engrenagem que faz girar a roda do cinema. A frase do produtor Jeremy Prokosch (Jack Palance), sintetiza parte do problema: “Quando ouço falar em cultura, saco logo meu talão de cheques”.

Hollywood, especialista em varrer o lixo para debaixo do tapete vermelho, começa agora a rasgar o véu que encobre não só os bastidores dos sets de gravações, mas também os dos faraônicos escritórios dos magnatas que controlam invisivelmente os fios do negócio não em Los Angeles, mas em Nova York, terra da estátua da liberdade e de Wall Street.

Abro logo um parêntese para dizer que o filme A Noite Americana (1973) não se enquadra nessa temática. O hipnotizante filme de Truffaut versa sobre a mentira, a omissão e o dissimulo como uma norma comum e corrente na sociedade contemporânea, algo tipo “penso, logo minto”. Truffaut não faz nenhum juízo de valor, não quer discutir se esse comportamento é ético, moral ou não, apenas mostra que se o cinema mente é porque a sociedade onde ele se insere e retrata também mente.

Para falar sobre isso ambientou o seu drama num set de filmagem, o mundo do faz de conta. O título é uma referência a um artificio técnico que os americanos inventaram e que permite gravar cenas externas noturnas de dia mesmo (day for night em inglês), quer dizer uma “mentira” cinematográfica.

François Truffaut, um ilusionista de primeira, soube camuflar muito bem o seu coelho no fundo da cartola e o público, por desatenção suponho, não percebeu o truque e saiu achando que tinha acabado de ver um filme “sobre o cinema”, outros mais exaltados dizem “um verdadeiro hino de amor ao cinema”. Recomendo ver de novo, dessa vez com os olhos bem abertos.

O cinema já foi objeto de análise, pouco profundas é verdade, em produções feitas na costa oeste dos Estados Unidos.

O drama Assim Estava Escrito (1952), dirigido por Vincent Minelli, conta a vida de um diretor de filmes (Kirk Douglas), a partir do depoimento de pessoas que trabalharam com ele, e as versões sobre a personalidade do personagem nem sempre coincidem. O mesmo Minelli dirigiu dez anos depois A Cidade Dos Desiludidos (1962), mais uma vez é Kirk Douglas o protagonista: um diretor no ocaso da profissão trabalhando em produções modestas feitas na Itália (Cinecittà, a Hollywood romana, é a cidade dos desiludidos do título).

Billy Wilder fez o clássico O Crepúsculo dos Deuses em 1950, o filme é um drama bem construído sobre um roteirista desempregado (William Holden) e sua relação com uma ex estrela do cinema mudo (Gloria Swanson em atuação épica) que não aceita a aposentadoria imposta pela indústria e quer voltar aos filmes custe o que custar. 

Harlow, A Vênus Platinada (1965), baseado na biografia da atriz Jean Harlow escrita por Irving Shulman, mostra também um pouco dos bastidores do cinema, a cena de abertura, enquanto rolam os créditos, diz muito sobre a indústria cinematográfica: é madrugada ainda e os operários fazem fila na porta de um estúdio para bater o cartão de ponto do trabalho (aqui lembro uma resposta que Alfred Hitchcock deu a um jornalista que lhe perguntou qual era a primeira coisa que ele fazia ao chegar no estúdio; “bato o ponto”, respondeu rápido o mestre do suspense, deixando claro que ele também era apenas mais um operário daquela enorme fábrica).

A Condessa Descalça (1954), roteiro e direção de Joseph L. Mankiewicz, mostra como um diretor em declínio (Humphrey Bogart) consegue uma sobrevida na indústria ao lançar ao estrelato uma anônima dançarina (Ava Gardner). Mankiewicz relata em fina dramaticidade as relações tempestuosas entre produtores, assessores e diretores na Hollywood dos anos 1950.

O Último Magnata (1976), adaptação do romance de F. Scott Fitzgerald dirigida por Elia Kazan, mostra a conturbada relação entre um poderoso produtor e uma atriz. Uma cena revela a frieza do magnata diante da tragédia humana: um funcionário tem um ataque cardíaco e morre dentro de uma cabine de projeção onde estão vendo um trecho de um filme em produção. O magnata com uma expressão de repulsa, indiferente, pede que retirem logo aquele cadáver dali.

O telefilme RKO 281, A Batalha de Cidadão Kane (1991), acompanha a complicada produção do clássico Cidadão Kane de Orson Welles em 1940. O 281 no título se refere ao número da produção que estava sendo feita na RKO naquele momento, estúdio onde foram gravadas as revolucionárias cenas do filme que mudou a história do cinema moderno, mas que quase foi incinerado literalmente antes do lançamento para satisfazer a vontade do milionário e big boss da imprensa, dono de centenas de jornais nos Estados Unidos, William Randolph Hearst, cuja vida, e da sua amante, a atriz jovem, bonita, mas pouco talentosa, Marion Davies, teria inspirado a criação do personagem Charles Foster Kane. Welles sempre negou isso. O fato é que essa acidentada produção rendeu também o longa Mank (2020), dirigido por David Fincher, Mank era o apelido de Herman Mankiewicz, roteirista desse clássico absoluto do cinema mundial. Nesse segundo filme a trama se detém mais sobre a pendenga a respeito da autoria do roteiro original, uma disputa acirrada entre Welles e Mankiewicz (o único Oscar que Cidadão Kane ganhou, das 9 indicações que recebeu, o de roteiro original, foi dividido com os dois). 

A deliciosa comédia Deu A Louca Nos Astros (2000), roteiro e direção de David Mamet, mostra os malabarismos da equipe de uma produção de baixo orçamento para realizar seu filme, a sedução do cinema envolve, e transforma, modos e costumes numa pequena cidade do interior.

Cantando na Chuva (1952) de Stanley Donen e Gene Kelly é talvez o filme da segunda metade do século 20 em Hollywood que mais escrachou o que está por trás da fábrica de sonhos, numa crítica ácida e bem-humorada o musical expõe toda parafernália técnica que é utilizada para tornar “realista” aos olhos dos espectadores todo o artificialismo que na verdade é um filme. A sequência em que Gene Kelly canta You Were Meant For Me para Debbie Reynolds num set vazio que aos poucos vai se transformando numa paisagem romântica por causa dos equipamentos técnicos, sobretudo da iluminação, tem apenas 4 minutos e meio mas vale por um curso completo sobre antiilusionismo no cinema.

Neste início da segunda década deste século 21, três produções se voltam para o interior da indústria do cinema: Hollywood (2020), minissérie criada por Ian Brennan e Ryan Murphy, trata de um grupo de aspirantes a atores e cineastas que topam tudo (tudo mesmo, não só as aspirantes a atrizes eram submetidas ao famoso “teste do sofá”) para conseguir uma vaga na Hollywood pós-Segunda Guerra Mundial. Os casos dos atores Rock Hudson e Rory Calhoun, por exemplo, estão explicitados na minissérie de 7 episódios.

The Offer (A Oferta), minissérie em 10 episódios, criada e roteirizada por Leslie Greif e Michael Tolkin, produção lançada em 2022 pela Paramount, é um mergulho mais profundo nas entranhas da indústria. A trama se passa no início da década de 1970 quando os estúdios Paramount à beira da falência foram vendidos para a multinacional Gulf +Western. Os tecnocratas da holding em Nova York não têm o mínimo conhecimento do negócio cinematográfico e não sabem o que fazer com a empresa, a maioria quer se livrar o mais rápido possível do pepino que compraram. Aí entra a figura de Robert Evans (Matthew Goode), lendário executivo da Paramount em Hollywood, jovem, ousado e com conhecimento total do ramo cinematográfico. Evans pede aos donos do negócio que deem uma chance para ele alavancar o estúdio, relutando os tecnocratas consentem, aí começa a reviravolta que tornou a Paramount o estúdio mais rentável da década de 1970 com filmes de baixo e médio orçamento que geraram lucros de milhões de dólares, Evans sabia como poucos dosar a arte com o negócio.

A minissérie é baseada no livro de memórias de Albert S. Ruddy (Miles Teller), obscuro produtor de comédias e séries para a televisão que pediu uma chance de trabalho no cinema a Robert Evans e ele concedeu. A primeira produção de Ruddy para a Paramount foi um fracasso total, mesmo assim ele ganhou nova chance, dessa vez para produzir um filme baseado num livro que a Paramount havia comprado os direitos (antes de se tornar um best-seller), pela bagatela de 15 mil dólares, uma pechincha para os padrões de Hollywood. O livro, escrito por Mario Puzo, era The Godfather (O Poderoso Chefão).

Aí começa um autêntico combate entre os criadores em Hollywood e os executivos tecnocratas em Nova York para produzir o filme, os primeiros querendo preservar a arte, os segundos apenas o lucro. 

Com um elenco de alto nível,(Burn Gorman,atuação brilhante como Charles Bluhdorn, CEO da Gulf+Western, entre outros)  direção de arte primorosa, diálogos inteligentes e envolventes, The Offer é daquelas minisséries que você senta no sofá e só desliga a TV no último episódio (fiz isso em 2 dias, cinco episódios de cada vez). As cenas das reuniões com os criadores e os financiadores, verdadeiros pugilatos verbais, revelam a queda de braço entre a arte e o capital na indústria do entretenimento audiovisual onde nem sempre a primeira vence. Nesses embates, os argumentos dos tecnocratas para tentar modificar os projetos originais é risível e mostram o abismo que separa os executivos dos artistas.

Outra cena curta mas reveladora dos porões da indústria mostra a secretária e braço direito de Ruddy, Bettye McCartt (Juno Temple, em memorável performance), andando com uma amiga candidata a atriz num daqueles carrinhos usados para percorrer curtas distancias dentro da Paramount, elas conversam sobre os critérios para testar uma nova atriz, nunca é o talento que conta, mas principalmente os atributos físicos e a disponibilidade para sair com os produtores, diretores ou executivos do estúdio, aliás critérios válidos até hoje.

Um detalhe ratifica a importância dessa indústria para a geopolítica americana: a presença, na noite do lançamento de O Poderoso Chefão, de Henry Kissinger, Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos no governo do presidente Richard Nixon, nos mostra que a força do cinema como instrumento de dominação cultural mundial transcende as palmeiras de Beverly Hills.

Outra produção que já estreou nos cinemas é Babylon (2022), a Babilônia do título é a Hollywood do final dos anos 1920, na transição do cinema mudo para o cinema falado.

Dirigido e roteirizado pelo jovem e talentoso Damien Chazelle (La La Land, Whiplash: Em Busca da Perfeição, O Primeiro Homem), o filme, tirando umas cenas escatológicas, ao meu ver desnecessárias e que quase descambam para a comédia pastelão (nada contra a comédia pastelão), é um mergulho nos bastidores da meca do cinema em seus primórdios quando se criaram as regras de relacionamento entre financiadores do negócio, produtores, atores, roteiristas e diretores dos filmes, regras que nem sempre se equilibram moralmente mas que permanecem em voga até os dias de hoje (vide o recente caso envolvendo o ex todo poderoso da Miramax, Harvey Weinstein, condenado a 23 anos de prisão em regime fechado por seus crimes de assédio sexual contra várias atrizes. Devo dizer também, a bem da verdade, que essa corrupção comportamental não é exclusiva da indústria do entretenimento de massa, vide o recente caso da Caixa Econômica Federal aqui no Brasil, por exemplo.).

Babylon é uma história de ficção, mas quem conhece um pouco da história de Hollywood vai perceber que os personagens e situações são baseados em fatos reais.

A direção de arte e a trilha sonora original (ambas indicadas ao Oscar 2023) são de alto nível, a sequência de abertura, uma festa numa mansão de um produtor, é de tirar o folego. Mas o que destaco realmente é um diálogo travado entre Jack Conrad (Brad Pitt), ator em decadência que não se adapta a era do som e Elinor St. John (Jean Smart, magistral em cena) a colunista social, nitidamente calcada em Louella Parsons, que escreve para uma revista sobre as fofocas do mundo do cinema. Essa cena, de pouco mais de 4 minutos, condensa de forma direta a efemeridade, a fugacidade da vida de todos envolvidos, especialmente os atores e atrizes, nessa gigantesca máquina de triturar gente que é a indústria do cinema (falo da indústria, não da arte), todos condenados um dia ao ostracismo e eternizados apenas como “anjos fantasmas” nas reprises de seus antigos filmes.

Babilônia tem 189 minutos de duração onde são contadas e confrontadas muitas histórias, as atuações de Margot Robbie (uma atriz cuja presença em cena vai muito além da sua beleza física, faz a candidata ao estrelato Nellie LaRoy), Diego Calva (rouba a cena como o assistente de estúdio Manny Torres), Jovan Adepo (o trompetista negro Sidney Palmer que ascende no cinema por talento própria), além dos outros já citados no texto, valem o tempo investido para ver a produção dessa nova Hollywood que começa a se voltar para si mesma em busca, quem sabe, de uma autocrítica que quiçá leve a uma transformação.

Antes tarde do que nunca.

4 comentários

  1. tema muito pertinente, professor! depois de muito tempo estou acompanhando uma série em desenho animado chamada BoJack Horseman, que trata de circunstâncias muito próximas a essa, da indústria, da manipulação, do processo de (manu)fatura dos produtos e, principalmente, do desmascaramento!

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  2. “O Desprezo” de Goddard pelo casamento entre o cinema e o mercado _em que o mais importante é o cheque_ resta de igual modo até hoje em seus filmes para nossa reflexão atual sobre o casamento entre a cultura e o mercado. A melancolia (Theme de Camille) e o desprezo de Camille (Bardot) por Paul (Michel Piccoli), que por sua vez despreza a arte e usa a mulher como objeto de troca, aponta para a morte. Mas como indicado no excelente texto, há quem saiba “dosar como poucos a arte com o negócio”.
    O melhor são as indicações preciosas para a discussão sobre a “força do cinema como instrumento de dominação cultural” . Vou assistir!

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  3. Caro Romero Azevedo: é realmente mais uma bela retrospectiva histórica sua sobre a produção cinematográfica, porém, aqui, especificamente, referenciada e contextualizada como produto de uma sociedade burguesa comandada pelo mundo da indústria na Europa e nos Estados Unidos.
    Três pontos:
    1. Claro que em O Desprezo, Godard realiza uma analogia crítica e mais profunda, pois não fica na superficialidade do real, ao evidenciar a manutenção da presença do fascismo em sua forma de se relacionar com a cultura e a arte tal qual no período do nazismo. Para tanto, emprega a frase derivada no filme que vem de “Goering”, que dizia que, quando “ouvia falar de cultura, sacava o seu revólver.” Na verdade, a autoria dessa frase é de Johst, dramaturgo e nazista. Johst foi presidente da Câmara de Escritores do Reich (1935), da Academia Alemã de Poesia (1944) e “Senador da Cultura do Reich.” A frase original é “Quando eu ouço cultura... eu tiro a trava de segurança de minha pistola Browning!” Será que filmes na forma de cultura alienada e submissa ao interesse do capital de capitães da indústria cinematográfica seria diferente da “arte degenerada”, entendida assim na concepção nazista, segundo a analogia de Godard? Aqui apenas uma provocação.
    2. É verdade que o metalinguístico filme de Truffaut, A Noite Americana, versa sobre mentira, omissão e “o dissimulo como uma norma comum e corrente na sociedade contemporânea, algo tipo ‘penso, logo minto’”. Convém não esquecer também que foi o ponto de ruptura de colaboração e amizade entre Trauffaut e Godard. Este acusou Trauffaut de omitir a verdadeira relação afetiva entre o diretor e atriz protagonista durante a realização do filme, de mentir para o público e de ser um apolítico.
    Godard afirmou: "Você diz que os filmes são como os grandes trens da noite, mas quem pega esse trem, de que classe social essas pessoas pertencem, quem o conduz? Se você não fala do Trans-Europa, pode ser o trem da periferia ou de Dachau-Munique". E, a partir daí, Godard passou a chamar Trauffaut de “pequeno burguês."
    Truffaut respondeu: "Seu comportamento é de um merda num pedestal. Eu não estou nem aí para o que você pensa de 'A Noite Americana', acho tudo lamentável de sua parte. Você mudou de vida, de pensamento e, mesmo assim, você continua a perder horas no cinema, perturbando os seus olhos. Por quê? Para achar o que alimentar seu desprezo por todos nós? Para reforçar suas novas certezas?".
    Os dois diretores da Nouvelle Vague não mais se reconciliaram e mostraram que o cinema também é uma arte não idílica, pois é movida também por relações sociais conflituosas entre pessoas e interesses distintos, além do óbvio antagonismo entre classes sociais.
    3. Babilônia trata da história da passagem do cinema manufatureiro para o industrial de Hollywood. Antes de tudo, esclareço que não é o seu caso na condição de crítico, prezado Romero, mas o meu ponto é que muitos analistas e críticos desqualificaram o filme. Eles consideraram que há revelações de cenas desagradáveis e escatológicas, portanto, supérfluas em Babilônia. Sucintamente pode-se dizer que um dos méritos do diretor Damien Chazelle foi não fazer concessões e ênfase centrada no glamour ou ainda apenas para mostrar um produto para entreter culturalmente. Daí ele desvela que há na história do cinema estadunidense tanto violência, exploração nas relações entre pessoas envolvidas no fazer cinema, preconceitos, poder despótico, ganância, beleza e escatologia. E isso tudo dialeticamente imbricado. Afinal, o cinema não é apenas entretenimento e arte da ilusão, mas também há história de vidas humanas, de desejos e de seus processos num movimento contraditório de fracassos e sucessos no mundo da sétima arte.

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  4. Um TEXTO. Um olhar. Uma aula. Como é bom querido Romero saber que sua visão cinematográfica, vai além aonde meus olhos nunca chegariam. Fiquei tão ávido com este valioso recorte, que gostaria de saber em que plataformas você consumiu as séries? Desde já muito obrigado por sua soma , enquanto amigo, critico e jornalista. Parabéns por comungar tamanha bagagem, recheada de uma semiologia, impar.

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