Tem Novidade no Front
novembro 02, 2022O notável romance
pacifista do escritor alemão Erich Maria Remarque lançado em 1929, Sem Novidade no Front, ganha sua
terceira versão para o cinema. Em síntese o livro trata dos horrores vividos
nos campos de batalha da primeira guerra mundial (1914-1918) pelos jovens
soldados alemães (entre eles o próprio escritor aos 18 anos), que foram
induzidos a participar da carnificina ludibriados por discursos demagógicos, assentados
numa ideologia mentirosa, que glorificavam a guerra e seduziam a juventude para
“morrer com honra pela pátria”.
A primeira adaptação
para a tela foi feita em 1930, pelo diretor americano Lewis Milestone e causou
grande mal-estar na nascente Alemanha nazista, a exibição só foi liberada depois
de profundos cortes impostos pela censura. O libelo antibelicista produzido
pela Universal arrebatou dois prêmios Oscar: o de melhor filme e o de melhor
diretor. As implicações desse filme nas relações diplomáticas entre os Estado
Unidos e a Alemanha nos anos 1930 estão detalhadas no ótimo livro O Pacto entre Hollywood e o Nazismo – Como o
cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler), de Ben Urwand (São
Paulo: Leya, 2019).
Em 1979 outra produção
americana adapta o romance de Remarque, Adeus
à Inocência (título em português) sob a direção de Delbert Mann. Além da
novidade do uso da cor (a primeira versão é em preto-e-branco), o filme aborda
por novos ângulos a rica e detalhada história contada no livro, botando por
terra essa bobagem reinante hoje de não dar um spoiler. Na minha modesta compreensão o importante em um filme não
é a sua história, mas a forma como ela é contada, isso é o que importa. Todos
sabemos que Romeu e Julieta morrem no fim e o que o Titanic está condenado ao
naufrágio, por exemplo, mas as situações, diálogos, ritmo, música e encenação
que conduzem a esse desfecho é o que torna um filme objeto do nosso interesse
ou não, o demais é secundário.
A terceira e mais nova
versão cinematográfica desse livro de leitura obrigatória para os que amam a vida
e respeitam o direito de viver do próximo foi lançada no último dia 29 de
outubro pela Netflix, trata-se de Nada de Novo no Front, filme alemão produzido nesse ano de 2022.
A primeira grande
novidade dessa versão é o fato de ser dirigida e interpretada por alemães, é a
primeira vez que o romance ganha no cinema uma leitura feita pelos descendentes
daquela tragédia humana. O diretor Edward Berger conduz a sua câmera como se
fosse uma personagem, ela está colada nos atores, chafurda na lama, rasteja
pelo chão, mas também se distancia ao máximo, em plongée total graças ao uso funcional do drone, ao mesmo tempo
mostrando a cena em sua plenitude e fugindo daquele horror sanguinolento como
que dando um tempo para o espectador recompor a respiração.
O realismo das cenas
de ação é impressionante, mas ao contrário de espetacularizar a violência como
a maioria dos filmes de guerra faz, essas cenas nos convidam à reflexão e nos
põem a pensar sobre a maior forma de corrupção que existe que é o assassinato,
não importando suas motivações e justificativas.
A imbecilidade cruel
da guerra, em qualquer tempo e em qualquer lugar, é demonstrada de forma
inequívoca numa cena onde os soldados invadem o refeitório numa trincheira,
matam os opositores e devoram como animais famintos a comida sobre a mesa tendo
como companhia os cadáveres estendidos no chão. Morte e vida entrelaçadas na
chacina que preludia o macabro banquete.
As cenas da sequência
que marca o anúncio do armistício pondo fim à guerra são de uma beleza trágica
comovente, a poucos minutos da hora combinada na mesa de negociações, 11 horas
da manhã, os soldados em ferrenha luta corporal se entreolham e num raro
lampejo de consciência, antes de se matarem estupidamente, percebem o absurdo
daquela peleja desistindo ambos de continuá-la.
Uma equipe de treze
profissionais cuidou da maquiagem expressionista, com máscaras de lama seca
cobrindo o rosto dos soldados, nos lembrando o episódio O Túnel do filme Sonhos (1990)
de Akira Kurosawa onde o yurei
(fantasma de um soldado japonês morto) persegue o seu comandante vivo para
pedir explicações sobre a inexplicável asneira da guerra. Tal como nesse
clássico japonês, no filme de Berger a maquiagem sublinha que os soldados são
mortos-vivos perambulando pelos umbrais do óbito.
A trilha sonora criada
por Volker Bertelmann é outro ponto de destaque desse remake, a música nos lembra o tempo todo o tom macabro de um teatro
de guerra onde a morte é naturalizada e das pilhas de cadáveres dos soldados
que tombaram só importa mesmo a plaqueta de identificação para o preenchimento
dos relatórios burocráticos das baixas nas trincheiras e campos de
enfrentamento.
As negociações para o
cessar-fogo entre franceses e alemães expõem de forma crua a frieza dos
desalmados senhores da guerra que mandam os jovens para o cadafalso, mas se
mantém covardemente bem protegidos em seus gabinetes na retaguarda.
Nada de Novo no Front nos surpreende pela capacidade de narrar uma história por demais conhecida de uma forma totalmente nova, com interpretações magníficas, uma fotografia dirigida pelo inglês James Friend onde, como já disse, a câmera se integra à ação como uma personagem, a edição de Sven Budelmann mantém o ritmo dramático sem a necessidade de utilizar cacoetes como dar solavancos na imagem para causar sustos no espectador. É uma superprodução brilhante que reproduz com fidelidade histórica no figurino (Lisy Christl), cenários (Ernestine Hipper), locações e adereços de cena (Patrick Herzberg e Jindrich Kocí sob a direção de Pavel Vojtisek) o ambiente da frente ocidental alemã na primeira das guerras mundiais.
Veja e confira.
4 comentários
Este texto é tão bom quanto o filme. Romero, adorei quando você deitou por terra esta bobagem de spoiler. Nunca me pertubou saber o que acontece em um filme ou o sei final. Você disse realmente o que interessa. Muito obrigada por mais um prazer gastronômico. Sim. Tenho fome de ler e de cinema. Tim Tim
ResponderExcluirTem errinhos mas não edita. "seu final"
ResponderExcluirNum tempo em que milhares de filmes e séries estão disponíveis em inúmeras plataformas digitais que lutam pela nossa atenção, indicações qualificadas são de suma importância. Um filme de guerra que não espetaculariza a violência com “cenas [que] nos convidam à reflexão e nos põem a pensar sobre a maior forma de corrupção que existe que é o assassinato, não importando suas motivações e justificativas” é realmente um achado! Mais um para minha lista. Obrigada pela indicação e pelo excelente texto.
ResponderExcluirainda tô devendo a audiência desse! uma pena que "Argentina, 1985" não tenha recebido o devido destaque neste Oscar!
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