Sabedoria Que Não É Do Tempo, Orixás E O Sol A Pino No Novo Disco da Cabruêra
setembro 28, 2022O álbum traz 11 músicas, dez compostas por Arthur Pessoa e uma da lavra de Mateus Aleluia e Dadinho.
A faixa introdutória tem um tom épico e lembra a sonoridade da música armorial, ela emenda com Passararinho cuja letra adverte: "Se você quer subir / não faça nada para descer / você pode sumir / antes de aparecer". É um recado assentado na sabedoria que não é do tempo e convida o ouvinte a uma reflexão.
Em Rosa, Arthur Pessoa exalta o poder da natureza e os mistérios da criação, aí lembrei de Shakespeare em Hamlet: há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar sua vã filosofia. Uma verdade traduzida e atualizada por Arthur na sua letra que diz ainda que a Rosa chegou "orientando o caminho / desfazendo a ilusão". Outra pauta para reflexão.
Deixa a gira girar (Mateus e Dadinho) introduz o tema dos orixás no repertório do disco. É uma leitura do poder da divindade, e suas múltiplas manifestações, que transcende o simplista e limitado sincretismo. É a compreensão do aforismo milenar Deus, há deuses que atesta a afirmação insofismável Deus é unidade múltipla perfeita. Nesses tempos sombrios de ignorância e intolerância esses versos soam como genuína pedagogia.
A Vida diz logo de saída: "O que a gente leva dessa vida / é a vida que a gente leva", esse marcante refrão me remeteu a The End, do álbum Abbey Road, onde os Beatles dão o mesmo recado ao modo deles: "And in the end / The love you take / Is equal to / The love you make" ("E no fim / O amor que você recebe / É igual / Ao amor que você dá"). Cabruêra e Beatles assentados na sabedoria atemporal nos impulsionando a um mergulho meditativo dentro dos nossos próprios abismos internos (enquanto ainda há tempo para fazermos isso).
"No mar, onde as ilusões da vida lhe levar / Ou se aprende a navegar / Ou nada". Começa assim a música No Mar, faixa número 6 do álbum Sol a Pino. Esse duplo sentido de o verbo nadar espelhado no substantivo impõe a leitura física do poema musicado para uma melhor apreensão do que quis dizer o poeta. Vemos também aqui uma ligação direta com os versos do italiano Petrarca que no século 14 escreveu: "navegar é preciso / viver não é preciso". É mais um convite ao autoconhecimento, onde cada um deve (ou deveria) auto analisar-se para saber quais são as suas reais capacidades e incapacidades para navegar no mar da vida, enfrentando com firmeza suas perigosas procelas. Tudo isso sem descuidar o tempo, grande verdugo, pois "ontem já não existe mais / o amanhã ainda não chegou / hoje logo se desfaz / como a gota de orvalho que secou", nos alerta Arthur Pessoa em seus instigantes versos.
Em Clareo os orixás retornam, "salve Xangô / salve Yemanjá", a batida ritmada da música incita à dança, ao giro, ao rodopio, pés descalços, num terreiro ou na beira do mar. Odoya!
Pipoca, faixa 9, fala de um mensageiro que ilumina com o seu canto e traz mensagem pra você, novamente a religiosidade de matriz afro é referenciada.
Na bela e inspirada Odoya, Arthur Pessoa reverencia Yemanjá-Rainha do mar, a Stella Maris que guia e protege os navegantes no mar da vida, o poeta também invoca a mítica sereia "em noite de lua cheia / encanto do navegador". O refrão saúda o "grande mar / infinito de amor", é uma música em feitio de oração.
A última faixa do álbum, a instrumental Marsicano, é uma homenagem ao músico e escritor Alberto Marsicano, introdutor da cítara no Brasil, morto em 2013 aos 61 anos de idade.
Tudo isso envolto numa poderosa sonoridade que inclui metais acirandados metamorfoseados no sotaque de orquestra dos lendários bois maranhenses, guitarras e baixos heavymetalianos, rabecas armoriais, tambores/alfaias maracatulizados, além de berimbaus, zabumbas e sanfonas numa sinfonia pós-tudo equilibrada em união.
A faixa-título, Sol a Pino, procura traduzir em sons os sinais emitidos pelo sol com suas gigantescas ejeções geomagnéticas que se acentuam como nunca em direção a todos os planetas em sua órbita, incluindo nossa pequenina Terra. São mensagens codificadas enviadas pelo "poder da natureza / mistério da criação", que urge serem decifradas por todos nós, enquanto há tempo.
Destaco também a funcional capa, quase uma mandala, sintetizando todo o conteúdo do álbum.
Cabruêra chegou, abra a porta, deixa entrar, ela é boa companhia.
Ouça no álbum na integra aqui:
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