“A Volta Pela Estrada da Violência”: meio século de um clássico que urge ser restaurado
setembro 01, 2021“A Volta Pela Estrada da Violência” está completando 50 anos do seu lançamento numa pré- estreia realizada no dia 25 de setembro de 1971 em Maceió (depois entraria em cartaz nos cinemas no dia 3 de outubro do mesmo ano). O filme, roteirizado e dirigido por Aécio Andrade, com assistência de Adnor Pitanga e José Mendes, foi um acontecimento de grande repercussão na cidade sertaneja de Santana do Ipanema quando da realização das gravações (cenas também foram filmadas na vizinha Maravilha). Além dos atores e técnicos profissionais, o drama rural com momentos de aventura e ação, contou com a participação de dezenas de moradores da cidade que atuaram como coadjuvantes ou como figurantes na maioria das cenas (aqui destaco as participações de Alberto Agra como o juiz e Alberto Oliveira como o padre).
Para que as novas gerações possam ter conhecimento desse filme urge uma restauração e digitalização, tarefa histórico-cultural que bem pode ser encampada pelo governo do estado de Alagoas e a prefeitura de Santana do Ipanema. A restauração e disponibilização das cópias digitais para escolas, bibliotecas, centros culturais, cineclubes e outras instituições similares seria um marco notável na história da cultura cinematográfica no estado e registraria para sempre, com honra e louvor, o nome dos gestores públicos envolvidos nesse importante projeto de resgate e preservação da memória local.
Além de ser o primeiro longa-metragem feito em Alagoas, o filme se insere na vertente do cinema brasileiro de filmes ambientados no semiárido nordestino tendo como empuxo dramático os conflitos envolvendo a terra e a água, elementos cruciais para a existência na região. O ponto subjacente ao filme é que a rebeldia contra o poder estabelecido tendo como impulso apenas uma vontade pessoal está fadada ao fracasso (uma reafirmação da derrota do cangaço? Uma confirmação da frustrada luta armada contra a ditadura? Ou ambas?). No filme, primeiro é a derrota da mãe que clama por justiça no âmbito do poder judiciário instrumentalizado para beneficiar os poderosos, depois é o próprio filho que no enfrentamento com as forças oficiais, militarizadas, profissionais, servindo ao poder dominante, é massacrado como um “fora da lei, ou “subversivo” como dizia a linguagem da repressão na época.
Um ponto que evidenciamos em “A Volta Pela Estrada da Violência” é o referente à organização performática dos tipos que compõe a narrativa urdida por Aécio Andrade. O jovem rebelde Calixto, interpretado por Maurino Alves, usa em sua indumentária elementos figurativos do western italiano bem em voga na época, configurando assim, no campo da diegese fílmica, a universalização de um personagem que embora tenha suas raízes no sertão nordestino encontra eco na legenda do justiceiro armado do oeste americano e sua releitura europeia: uma apropriação do conceito de antropofagia cultural tendo como base o cinema e suas múltiplas metamorfoses, unindo John Ford-Sergio Corbucci-Aecio Andrade. Aqui, as lições de Oswald de Andrade (nenhum parentesco com o diretor) em seu “Manifesto Antropófago”, ou seja, assimilar outras culturas, mas não copiar, são reconfiguradas e postas em prática neste hoje clássico do cinema brasileiro.
A emblemática sequência da procissão profana conduzindo Calixto, um filho de Antonio das Mortes, pelas ruas da cidade é uma das imagens icônicas desse filme pioneiro gravado no sertão alagoano.
Uma das muitas qualidades deste filme, que precisa ser visto pelas novas gerações, é a fotografia de José de Almeida Mauro, premiada nacionalmente.
José de Almeida Mauro era um mestre da fotografia em preto-e-branco, um artista cujo trabalho pode ser colocado no mesmo patamar dos trabalhos feitos pelo japonês Asakazu Nakai, o americano Greg Tolland, o chinês James Wong Howe e o mexicano Gabriel Figueroa, que foram contemporâneos dele.
A enorme experiência de Zequinha Mauro como era chamado carinhosamente, adquirida nos mais de cem filmes documentários que fotografou para o pai Humberto Mauro e outros cineastas, além do longa de ficção “O Canto da Saudade”, dirigido por Humberto em 1952 e que lhe valeu o troféu Saci de melhor fotografia do ano, permitiu que ele dominasse como poucos a fotografia ao ar livre, com luz natural, sem as facilidades encontradas nos estúdios onde o domínio do fotógrafo sobre o ambiente fotografado é total. José Mauro voltou a ser duplamente premiado em 1972 quando recebeu o troféu Coruja de Ouro, outorgado pelo Instituto Nacional do Cinema (INC), de melhor fotografia em preto e branco pelos longas “Um Homem Sem Importância” de Alberto Salvá e “A Volta Pela Estrada da Violência” de Aécio Andrade, filme que é o objeto dessa publicação.
A câmera de José de Almeida exerce uma empatia com a paisagem nua, o sol a pino do sertão, a aspereza da natureza em volta, o movimento quase selvagem dos animais e os rostos limpos sem maquiagem dos atores. Aos olhos do espectador parece tudo natural, mas na verdade essa imagem que nos soa familiar é fruto de um conhecimento técnico profundo de emulsões, filtros, diafragmas, obturadores e da própria câmera, resultando dessa alquimia que tem como ponto de partida o olho humano aquela imagem plasmada na película de celuloide, imagem que encanta, porque poesia crua, e ajuda a contar a trama de “A Volta Pela Estrada da Violência”.
Protagonizando o drama escrito e roteirizado por Aécio Andrade está a atriz “paraíbucana” (nascida em Recife e radicada em João Pessoa) Margarida Cardoso. Margarida fez sua estreia no cinema pelas mãos de Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro que dirigiu 63 filmes, a maior parte deles na Europa. O filme se chamava “O Canto do Mar”, lançado em 1953. Sete anos depois Margarida Cardoso protagonizava outro longa metragem “A Primeira Missa”, dirigido por Lima Barreto em 1960. Em 1963 foi dirigida pelo italiano Alberto Daversa em “Seara Vermelha”. Em 65 ela fez o hoje clássico “Menino de Engenho”, adaptação do romance homônimo de José Lins do Rego dirigida por Walter Lima Jr e “Vereda da Salvação”, direção de Anselmo Duarte, também uma adaptação da obra de mesmo nome escrita por Jorge Andrade. Em 1970 participou de “O Salário da Morte”, estreia do documentarista paraibano Linduarte Noronha na ficção e “A Volta Pela Estrada da Violência” do baiano Aécio Andrade, primo de Glauber Rocha.
No filme gravado em Santana do Ipanema em 1970 e lançado em 1971, Margarida Cardoso fez o seu melhor trabalho para o cinema. Ela interpreta a personagem Geracina, uma vítima das ambições desprezíveis dos desalmados (aqui representado pelo latifúndio improdutivo e seus conflitos universais e seculares) que sofre com esse trágico destino e tem sua humanidade colocada à prova, levando-a a se rebelar contra o injusto mundo que a cerca, se transformando numa pessoa com uma fúria incontrolável cujo único objetivo passa a ser a vingança. Essa característica particular da personagem permitiu a grande atriz nordestina um desempenho realista, modulando as emoções numa sintonia com as tragédias gregas e sua dramaticidade clássica assentada nas paixões humanas e suas consequências. As cenas em que Geracina chora desesperadamente a morte do filho no terreiro de sua casa; depois apresentando o corpo para a multidão na escadaria da igreja e enfrentando seus algozes no tribunal do júri são dignas de qualquer antologia cinematográfica.
A montagem/edição do experiente João Ramiro Mello, oriundo do cinema documentário, corre de forma a permitir um fluxo narrativo claro com seus clímax e pausas ordenados linearmente, de acordo com o que pede a narrativa.
Na trilha sonora temos a importante colaboração do maestro-compositor-arranjador Pedro Santos, que compôs também as trilhas de "Romeiros da Guia" (Vladimir Carvalho e João Ramiro Mello, 1963); "Menino de Engenho" (Walter Lima Jr., 1965), "Fogo, O Salário da Morte" (Linduarte Noronha, 1970); "O Homem do Corpo Fechado" (Schubert Magalhães, 1973) e "Fogo Morto" (Marcos Farias, 1976). As canções são do compositor paraibano Marcus Vinícius.
Para ser apreciado e avaliado corretamente, esse filme, como todos os outros, precisa ser apresentado numa cópia decente que preserve a qualidade da fotografia e do som. A cópia existente no Youtube, embora seja a única disponível ao público, não faz jus a esse clássico do cinema brasileiro que chega agora aos seus 50 anos.
É preciso restaurar já “A Volta Pela Estrada da Violência”, a história do Cinema Brasileiro, de Alagoas, e especialmente do sertão agradecem.
Veja o filme aqui:
4 comentários
Texto de uma riqueza histórica espetacular; luz, câmara, ação!!!!! Parabéns Romero você é genial.
ResponderExcluirCom certeza, mais um filme fantástico da nossa cinematografia que fica perdido pelo tempo e pelo desinteresse dos poderes públicos.
ResponderExcluirPoucos "Nordesterns" sobreviveram à ação do tempo, principalmente os que foram realmente produzidos no Nordeste. Que a gente não perca nossa história em definitivo!!
Excelente texto
ResponderExcluirA poética da escrita começa a desenhar as linhas de força da restauração, primeiro, na medida em que recobra toda riqueza simbólica do filme restaurando a energia primitiva de imagens e palavras, depois, fazendo faltar o filme, um filme pra ver na tela o que fora dela se torna invisível. A violência sempre retorna. Ótimo filme! Aula de cinema! Obrigada, Romero.
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