Ano Novo é Tempo de Retrospectiva: Os 10 Melhores Filmes Vistos em 2021
janeiro 01, 2022Como os leitores já devem saber, a lista se refere aos filmes que vi pela primeira vez, portanto inéditos para mim, não importando o ano do lançamento (sempre digo que o digital tornou tudo contemporâneo). Evidentemente que num universo de 264 filmes vistos ao longo do ano, existem muito mais que dez “melhores”, mas o número dez aqui é apenas uma tradição canônica, uma seleção da seleção. A ordem em que os filmes estão colocados é simplesmente porque não temos como ordenar de forma diferente, logo fica claro que o primeiro não é melhor que o último, todos merecem ser vistos.
Sem mais delongas, como dizia meu guru cinematográfico Humberto de Campos, vamos aos dez melhores do ano que terminou:
Belfast - Reino Unido, 2021
De um lado o stablishment com suas garras, com os seus cobradores de impostos, seu exército, seus policiais e o confronto das igrejas ditas cristãs oprimindo todos, fiéis ou não. Do outro lado uma família comum acossada no meio dessa guerra estúpida, despedindo-se sazonalmente na rodoviária, buscando uma válvula de escape para viver e respirar livremente.
O vigésimo-segundo filme dirigido pelo também ator irlandês Kenneth Branagh é autobiográfico (ele também assina o roteiro) e se passa na cidade de Belsfat, capital da Irlanda do Norte, no final da década dos 60, precisamente em 1969 quando Branagh tinha nove anos de idade.
É um filme com uma história triste, mas contada com uma beleza estonteante; fotografado em preto e branco pelo chipriota Haris Zambarloukos, com breves e funcionais momentos coloridos, o filme já traz na textura da imagem a dualidade que move os conflitos sangrentos na cidade. Mais que um simples apelo realista, buscando uma acomodação visual com os filmes produzidos nos 60, a escolha do preto e branco arrasta para o campo da imagem a divisão étnica-religiosa entre católicos e protestantes e o permanente embate entre os cidadãos-trabalhadores e o governo-sistema que não lhes dá trégua, antagonismo (como o preto e o branco da fotografia) responsável pelo permanente clima de guerra em Belfast naquele período histórico.
A trilha sonora é outro destaque à parte, especialmente a música Do Not Forsake Me (Oh my Darling) cantada por Tex Ritter. Originalmente da trilha do filme Matar ou Morrer (High Noon, 1952), a canção pontua o clímax de Belfast ressignificando ao mesmo tempo, numa sacada genial, a letra da música e o clímax do western clássico de Fred Zinneman. O elenco é outra preciosidade desse drama pungente e arrebatador.
Veja o quanto antes.
Marighella - Brasil, 2019
A estreia na direção do ator Wagner Moura resultou num thriller-político-naturalista muito bem realizado que segura a atenção do espectador nas suas 2h35m de duração. As cenas de ação, além de serem produzidas com esmero profissional, foram editadas num ritmo eletrizante, pouco comum no cinema nacional.
A opção por uma narrativa linear-naturalista segue uma quase tradição do cinema brasileiro desde os seus primórdios nos anos 1920. Filmes baseados em casos reais sempre atraíram o interesse do público, o cineasta Hector Babenco, por exemplo, explorou esse estilo narrativo e obteve êxitos seguidos de bilheteria com Lucio Flavio, o passageiro da agonia; Pixote, a lei do mais fraco e Carandiru. Em 2007 e 2010 foi a vez de José Padilha encantar o público com Tropa de Elite e Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro, dois campeões de bilheteria.
No plano internacional um cultor desse tipo de cinema é o cineasta grego, naturalizado francês, Costa-Gavras, que lotou as salas em todo o mundo com Z (sobre a ditadura dos coronéis gregos), Estado de Sítio (sobre a repressão na ditadura civil-militar uruguaia e seus desdobramentos no Cone Sul), A Confissão (sobre a tortura e perseguição política na ditadura comunista tcheca), Desaparecido: um grande mistério (sobre os horrores da ditadura Pinochet no Chile), e mais recentemente Jogo de Poder (sobre as crises econômicas artificiais forjadas pelos especuladores internacionais para subjugar os países a seus interesses).
O naturalismo busca envolver o espectador mais pela emoção que pela razão, esse direcionamento ao emocional, conseguido pela forma de atuação dos atores, o mimetismo físico com os personagens reais (sem excluir possíveis licenças poéticas), o suspense e a ação envolventes, a trilha sonora emotiva realçando o tom melodramático da narrativa, provoca sempre uma empatia quase que automática e não é raro ver nas salas o público se manifestando com aplausos efusivos e palavras de ordem, torcendo comoventemente pelos personagens na tela.
Há de se destacar também a ampla repercussão do filme na mídia o que fez com que o cinema brasileiro voltasse ao centro dos acalorados debates culturais e, por tabela, lotasse as salas dos cinemas onde foi exibido fazendo com que Marighella se tornasse a maior bilheteria do cinema nacional em 2021, o que é sempre alvissareiro.
(o tema do Naturalismo foi abordado na dissertação Um trânsito naturalista: da literatura ao cinema brasileiro, defendida por nós no Mestrado Literatura e Interculturalidade da UEPB/UFPE em 2008).
Harakiri - Japão, 1962
Finalmente, 59 anos depois do seu lançamento, vi essa obra-prima dirigida por Masaki Kobayashi com o estupendo Tatsuya Nakadai interpretando o samurai desempregado Hanshiro Tsugumo que bate à porta de uma poderosa dinastia do século 17 pedindo permissão para cometer o suicido por harakiri no pátio interior da casa (uma tradição naquela época).
A partir desse mote, o roteiro de Shinobu Hashimoto expõe as vísceras do Japão feudal mostrando que até uma cerimônia nobre, quase sagrada, como o harakiri tem também o seu lado nada edificante e pode esconder hipócritas e covardes travestidos de samurais. Valeu a pena esperar todo esse tempo para ver essa joia rara do cinema, mas você não deve esperar mais 59 anos para vê-lo.
Mass - EUA, 2021
Quatro atores e atrizes extraordinários, Jason Isaacs, Martha Plimpton, Reed Birney e Ann Dowd, uma sala contígua a uma igreja episcopal, uma mesa, quatro cadeiras, um pequeno arranjo de flores num jarro, uma caixa de lenços de papel.
O ator de mais de 70 filmes, Fran Kranz, estreando na direção, só precisou desses recursos cenográficos para filmar o roteiro escrito por ele mesmo e fazer um filme impactante onde é impossível piscar o olho durante a fruição das imagens, sob pena de perder o bonde da reflexão.
Uma aula brilhante de cinema de baixo custo (foi filmado em apenas 14 dias, sendo 4 de externas), criativo, envolvente, com uma mise en scène impecável.
É um drama psicológico contemporâneo que tem a ver com todos nós, não perca.
O Capitão - Alemanha, 2017
Diz o resumo do IMDB: Nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, um jovem soldado alemão lutando para sobreviver encontra um uniforme de capitão nazista. Posando como um oficial, o homem assume a identidade monstruosa daqueles de quem ele tenta escapar.
No final a equipe de gravação sai pelas ruas da Alemanha de hoje com o jovem “capitão” e seus soldados pedindo agressivamente para ver os documentos das pessoas nas praças e calçadas. A reação dessas pessoas diante do arrogante “nazista” é, como dizem os espanhóis, “escalofriante”.
Um filme obrigatório, antes que seja tarde demais.
A Ascenção - Rússia, 1977
Talvez o melhor filme feito sobre a estupidez, insensatez e nonsense de uma guerra. A cineasta Larisa Shepitko conduz com olhar seguro sua câmera sobre a paisagem e cenários e dirige com rara sensibilidade o seu elenco maravilhoso, extraindo de todos em cena o melhor do oficio de cada um.
Obra para ser vista imediatamente.
O Dia Mais Longo do Japão - Japão, 1967
A guerra vista pelo lado dos perdedores. Os conflitos éticos e, sobretudo, morais dos oficiais japoneses diante da humilhante rendição iminente depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki. O filme de Kihachi Okamoto confirma: a guerra é uma insanidade total, não importa o lado.
Com a singular forma de atuar que o celebrizou, Toshiro Mifune vive o então Ministro da Guerra japonês, General Korechika Anami.
Indispensável, veja assim que puder.
The Beatles: Get Back - Reino Unido, 2021
Tudo o que já foi dito sobre esse filme de Peter Jackson, editado a partir de imagens gravadas, produzidas e dirigidas por Michael Lindsay-Hoog em 1969, é pouco. O filme original, Let it be, lançado em 1970, apresenta uma imagem desoladora da banda como se as sessões de gravações tivessem sido feitas num clima de guerra entre eles, não é verdade.
Get Back é mais que um documentário consistente, repleto de imagens raras de arquivo e conversas também raras com os quatro Beatles work in progress. O filme, dividido em três partes, é um registro único de um momento único da cultura pop no ocidente naquele final da década que escancarou tudo, e mostra os Beatles descontraídos, brincalhões, entusiasmados com o projeto em que trabalham, criando a todo vapor e culminando com a apresentação histórica deles no telhado do prédio situado na Saville Road, 03, em Londres em 30 de janeiro de 1969. Tudo isso, como já vimos, ao som da mais fina música daquela banda de Liverpool que, acredito, vocês já devem ter ouvido falar.
Recomendo não só para fãs dos Beatles.
Manikarnika: A Rainha de Jhansi - Índia, 2019
Épico indiano que conta a história real de Rani Lakshmibai, uma das principais figuras da rebelião indiana de 1857, e sua resistência ao domínio britânico.
Em pleno século 19, Rani empunhou sua espada e partiu para a luta ao lado dos nacionalistas indianos contra o poderoso império colonialista britânico. Uma mulher guerreira, de origem nobre, totalmente desconhecida no ocidente e que agora tem sua história contada nessa superprodução primorosa dirigida a quatro mãos por Radha Krishna Jagarlamudi e a jovem atriz/diretora (34 anos) Kangana Ranaut, que também interpreta magistralmente a personagem-título.
O cinema indiano contemporâneo há muito superou Hollywood no quesito "superprodução histórica". Confira.
O Mauritano - EUA, 2021
Tortura, prisão clandestina, desprezo pelo ser humano, são inaceitáveis depois de tudo que aprendemos (?) na história sobre o nazismo, fascismo e outros “ismos” opressores e abjetos.
A luta de Mohamedou Ould Salahi pela liberdade, após ser detido e preso sem acusação durante anos pelo governo dos Estados Unidos, dignifica a espécie humana e nos convida a dar uma mirada no espelho.
Esse tipo de filme tem que ser feito e visto pelo maior número de espectadores possível.
Nossa lista acaba aqui, sugiro conferir essas produções.
Boas sessões!
8 comentários
As informações sobre cinema e filmes no blog Babitóliocapilônia, por Romero Azevedo, são imperdíveis. E essa lista dos 10 é sublime!
ResponderExcluirLista sensacional, além de importante, pois tá toda pautada em acontecimentos e circunstâncias históricas! Parabéns e ótimo ano novo, professor!
ResponderExcluirS. Brasil
ResponderExcluirExcelente. Das indicações duas assisti: Narighella e The Beatles. Ambas imperdiveis. Em Marighella a atuação de Seu Jorge e impressionante. Parabens.
Na nossa época se acentua a fragmentação, fica difícil encontrar pessoas que assistiram o mesmo filme, cada um com sua própria tela portátil ver um filme diferente, a multiplicidade de filmes disponíveis (para ver em casa, viajando ou mesmo na sala de espera do médico) é exorbitante. Portanto, ter uma lista com preciosas indicações produzida por um professor e pesquisador em cinema, música e outras artes é um privilégio e tanto. Realmente um trabalho lindo. Obrigada!
ResponderExcluirLista abrangente e competentemente feita. Diferentes filmes, países que nem sempre são vistos pelo grande público.
ResponderExcluirAgora é escolher o que assistir.
Excelentes dicas, Romero! Vou procurar assistir aos que ainda não vi. Obrigado por ampliar nossos horizontes sobre essa maravilhosa arte chamada de cinema. Valeu!
ResponderExcluirExcelentes dicas, Romero Azevedo. Vou procurar assistir aos que ainda não vi. Obrigado por ampliar nossos horizontes sobre essa maravilhosa arte chamada de cinema. Valeu!
ResponderExcluirEstes filmes estão na minha lista para assistir ainda em Janeiro. Uma lista feita por Romero Azevedo é mais do que obrigação e dever segui-la. É o que há de mais prazeroso cultivo desta arte cinematográfica. Onde estava que ainda não vi estas preciosidades? Obrigada, Romero.
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