As Versões Que Você Fez Pra Mim

outubro 13, 2021


O tema das versões de músicas estrangeiras para o português/brasileiro sempre provoca uma certa polêmica. Uns são radicalmente contra outros são radicalmente a favor e outros não se interessam por música.

Zé Ramalho contou em entrevista que quando fez o disco em homenagem a Bob Dylan (o bardo preferido por nove entre dez artistas intelectuais da música popular) a única exigência que ele fez para liberar as músicas foi que todo dinheiro da venda dos discos fosse para ele, pois considerava que as músicas, mesmo que transpostas para outra língua, eram dele. Permitam-me a ousadia de discordar do oscarizado e nobelizado vate norte americano, e vou logo expondo minha opinião: o cara que fez a versão, naquele especifico país, é um parceiro do original. No Brasil temos dezenas de exemplos disso, para mim “I Should Have Known Better” dos Beatles, versionada por Renato Barros como “Menina Linda”, é no Brasil e especialmente no Nordeste, mais uma canção de Renato e seus blue caps que dos Beatles. Quando escutamos os acordes iniciais dessa música o que se instala no nosso inconsciente não é “I should have known better with a girl like you”, o que nos chega na ponta da língua é “Ah, deixa essa boneca faça-me o favor”.

Renato Barros foi mais além das versões das letras das músicas (não traduções, que é outra coisa) ele também adaptou a batida daquele rock inglês que tomava de assalto o mundo da música pop para o paladar musical dos brasileiros, essa mistura, segundo ele de “Besame Mucho” com Ray Connif/ “Tutti-Frutti” com Elvis Presley e o som dos Beatles, foi batizada como “shakundum”, que vem a ser aquele ritmo guitarreado de 90% das músicas da Jovem Guarda (onda musical jovem dos anos 1960 do século 20 onde o “yeah,yeah,yeah” dos Beatles virou “iê,iê,iê”). Ainda sobre essa questão de criação de uma nova batida rítmica para ser melhor assimilada pelo público em cada lugar, abro um parêntese para contar que em Itaporanga o exímio barbeiro Chico Viriato também é músico, toca violão e compõe. Num fim de tarde memorável no salão dele, depois de cortar o cabelo, pedi para ele me mostrar seu trabalho musical e ele me mostrou três composições próprias e nos brindou no final com a interpretação de “Feche os olhos”, que vem a ser a versão de Renato e seus blue caps para “All my loving” dos Beatles. O incrível dessa história é que a versão de Chico tem uma batida que nem é Beatles nem muito menos é Renato e seus blue caps. Numa sonoridade bem própria, um tom abolerado mesclado com um sincopado dolente de guarânia paraguaia, a interpretação dele me impactou positivamente e fiquei muito feliz em ouvir uma novíssima interpretação daquela melodia tão familiar aos meus ouvidos depois de muitos anos ouvindo o original dos Beatles e a versão dos Blue Caps. Era o “shakundum” criado por Renato em especial metamorfose, uma expressão comovente da voz profunda da alma brasileira no sertão paraibano. Fabuloso.

O poeta e compositor Braulio Tavares nos ensina com propriedade que é impossível fazer uma versão tipo tradução literal do original, ou as palavras em português não se encaixam na melodia ou a rima não funciona. O que ele faz, e o faz muito bem, é aproximar ao máximo o sentido da letra original na versão. Um exemplo disso, com um pouco de sorte, ainda da época da Jovem Guarda é “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones”, versão de Brancato Junior para a italiana “C'era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones” um estrondoso sucesso do cantor Giani Morandi em 1966 e gravada aqui por Os Incríveis em 1967 (em 1990 os Engenheiros do Havaí regravaram com enorme sucesso essa versão). A proximidade dos idiomas, ambas línguas neolatinas, ajudou Brancato Junior que fez uma versão brasileira rigorosamente igual ao original (inclusive o título), conservando a ideia da letra da música sem alterar seu conteúdo.

Ao que parece os americanos não se preocupam com esse tipo de discussão que temos aqui nos trópicos, ao contrário, lá em se tratando de obra estrangeira só funciona para eles a versão americana. Foi assim no cinema com o clássico japonês “Os sete samurais” de Akira Kurosawa que lá foi refilmado como o western “Sete homens e um destino”, dirigido por John Sturges (em 2016 o diretor Antoine Fuqua fez nova versão desse clássico). A comédia francesa “3 Homens e um Bebê” de 1985 ganhou versão americana em 87 “Três Solteirões e um Bebê”, a comédia dramática argentina “Elsa e Fred: Um Amor de Paixão” (2005) foi refilmado em Hollywood em 2014 com o mesmo título.

No campo musical a atitude é a mesma, um exemplo é a canção francesa “Comme d'habitude” (Como de costume ou como habitualmente), composta por Jacques Revaux e gravada por Claude François em 1967 (embora no disco apareça Claude como “parceiro”, uma exigência que fez ao jovem compositor para gravar). A letra fala de um casal em crise, da rotina atrapalhando a vida deles etc. No final desse mesmo ano de 67, Paul Anka (“Oh! Carol”, “Diana” entre outras) estava em Paris e ouviu Claude Français cantando a música na TV. Comprou os direitos e fez uma versão em inglês mudando totalmente o sentido da letra original, deu para Frank Sinatra gravar e daí surgiu um dos maiores sucessos do “blue eyes”, a belíssima “My Way”, lançada em 1969. O mesmo Sinatra gravou em 67 um disco em dueto com Tom Jobim, todas as músicas incluindo “Garota de Ipanema” são cantadas em inglês.

Voltando ao Brasil, o rei das versões em São Paulo no final dos anos 1950 e durante toda a década dos 60 era Fred Jorge (no Rio era Rossini Pinto). Fred fez versões para Cely Campelo, Carlos Gonzaga, Ronnie Von etc etc etc. Uma grande sacada melódica dele foi na música “Diana” de Paul Anka, cantada aqui por Carlos Gonzaga. Dos versos “So only you can take my heart / Only you can tear it apart?”, ele aproveitou o “only you” original e encaixou na letra dele ficando assim: “Only you pode fazer-me feliz / Only you é tudo aquilo que eu quis”. Ainda hoje quando escuto ou canto essa música, seguro o riso nessa parte, mas convenhamos que foi uma grande sacada, né não?

Uma versão escandalosamente absurda (pela ousadia e nonsense porque feita em plena beatlemania dos cabelos longos) é a da música “A Hard Day's Night” dos Beatles cujos versos iniciais que dizem “It's been a hard day's night/ And I've been workin' like a dog”, ficaram assim na versão da banda Os Carecas: “Ser cabeludo é bom/Mas ser careca é demais” ...rsrsrsrs. Não é do meu gosto esse tipo de versão, mas defendo até a morte o direito de fazê-las.

Tem também o caso de diferentes versões para a mesma música, caso de “All Of Me”, a bela canção de Gerald Marks e Seymour Simons lançada em 1931, gravada também em 1941.por Billie Holiday e que ganhou a bela versão “Disse Alguém” feita por Haroldo Barbosa e gravada,entre outros, por João Gilberto,Caetano Veloso e Gilberto Gil no memorável disco “Brasil” de 1981. Antes, em 1965, Os Golden Boys gravaram “Ai De Mim”, versão da mesma música feita em ritmo de Jovem Guarda por Neusa de Souza.

O cantor Agnaldo Timóteo alcançou o estrelato com os dois primeiros discos que gravou, foram 24 versões em dois Lps (disco de vinil com 12 músicas cada um): "A Casa de Irene" (A Casa D'Irene), "A Casa do Sol Nascente" (The House Of The Rising Sun), "É Tão Triste Veneza" (Que C'est Triste Venise), “Mamãe" (La Mamma)., "Último Telefonema" (L'ultima Telefonata) e "Furacão” (Thunderbal) são algumas das faixas desses discos bem produzidos, com direção musical, arranjos, coro, orquestração e regência do célebre maestro Lyrio Panicalli. 

“O astro do sucesso”, segundo disco de Timóteo, foi gravado em apenas dois canais, com a orquestra completa e o cantor juntos no estúdio, nada de sintetizadores ou outros truques digitais de hoje. A crítica musical escrachou Aguinaldo, mas o público adorou. Eu particularmente ouvi pela primeira no alto falante da difusora do Parque Lima, armado em frente ao antigo edifício da Telpa na Floriano Peixoto, a música “Cai A Neve”, versão da francesa “Tombe La Neige”, gravada nesse disco,tinha uns 13 anos e gostei imediatamente. A potente voz de Timóteo, o arranjo e o peso da orquestra com seu naipe de metais destacando os trombones, tuba e trompete; o naipe de cordas fazendo o contraponto harmonioso com os seus violinos, piano e violoncelo, tudo isso sem faltar a guitarra e a marcação forte do contrabaixo eletrificado (um signo sonoro daqueles anos 60) fazem da faixa “Não te amo mais” (Je Ne T'Aime Plus), a segunda do lado A de “O Astro do Sucesso”, um grande momento da arte de músicos brasileiros produzida em estúdio. A letra de Nazareno de Brito, um inspirado compositor carioca craque em versões, .traz um verso simples mas que poderia estar escrito numa das cartas de amor apregoadas por Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, diz: “um dia o amor nos guiou como dois tolos felizes”. É ridiculamente eloquente. 

Não poderia encerrar essa conversa sem lembrar um caso tipicamente brasileiro (não conheço registro similar em outro lugar): a versão em português de uma música em inglês feita por compositor... brasileiro! Nos anos 1970 de repente surgiu uma tendência no mercado de discos, bandas e cantores brasileiros com pseudônimos em inglês, cantando em inglês. Terry Winter, Morris Albert (cujo sucesso internacional “Feelings” foi gravado até por Caetano Veloso), Steve MaClean, Richard Young, Paul Denver, Mark Davis (que depois assumiria seu nome original Fábio Jr.), Tony Steves (que depois emplacaria o sucesso “Porto Solidão” com o nome próprio Jessé) e Michael Sullivan (Ivanilton de Souza Lima) eram alguns desses cantores.

As bandas que mais se destacaram no período foram “Pholhas”, com o estrondoso sucesso “My Mistake”, e “Light Reflexions” com o hit “Tell Me Once Again” de 1972 que ganhou versão escrachada cantada por Ney Matogrosso nos anos 1980: “Telma Eu Não Sou Gay”.

Versão é uma prática comum na música popular do ocidente, aqui até os compositores tidos como mais refinados em seu trabalho também já fizeram suas versões, como é o caso de Caetano Veloso que compôs “Negro Amor” a partir de “ It’s All Over Now, Baby Blue” de Bob Dylan e Chico Buarque com “Minha História”, versão da italiana “Gesù Bambino” de Lucio Dalla

Todas as músicas citadas estão disponíveis no Youtube/Spotify, ouçam e confiram.

6 comentários

  1. Como sempre, muito cirúrgico com as palavras, belo texto.

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  2. Boa noite, quero parabenizar esse magnífico e extraordinário jornalista, Romero Azevedo, pelo o belo texto produzido, onde podermos observar em suas palavras a verdadeira influência da música estrangeira em nosso país, no qual somos gratos a essa valiosa e bonita parceria.

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  3. Uma viagem pelo mundo da música. Ótimo post.

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  4. Vou fazer uma playlist dessas músicas todas pra ouvir a versão original e depois as regravadas hehehe

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  5. Digo com Bráulio Tavares - ver neste blog: OS GÊMEOS GENIAIS, Novembro 25, 2020 - que antes do google, os gêmeos Rômulo e Romero Azevedo eram nossa bússola. Continuam sendo. Qualquer coisa que a gente quiser saber é só perguntar a eles. Aqui pra nós e pro mundo todo, é mais gostoso ouvi-los falar sobre qualquer coisa do que ler no google. Neste texto de Romero Azevedo podemos ver perfeitamente como uma erudição espantosa nos é dada de forma poética e visceral, literariamente fabulosa ao modo de um documentário com informações históricas precisas. Pode ter duzentas páginas. Ninguém se cansa, e quer sempre mais. Eu, que fui cria do cinema e das canções e adoro escrever versões, já reli este texto mil vezes e estou indo atrás de cada uma de sua indicações preciosas. Obrigada, Romero. Danke, Merci, Thanks, Gracias

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  6. Versões normalmente são polêmicas e muitas vezes são um desastre se comparadas com o original, como foi o caso da "Astronauta de Mármore" de "Starman" que a banda Nenhum de Nós fez em 1989 para homenagear Bowie e que foi bastante criticada, e pior ainda foi o fato da banda Feijão com Arroz ter gravado em ritmo de forró sem dar nenhum crédito de composição.

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