Três Elefantes, Um Vampiro e Meninos escorrendo na fina areia da Ampulheta do Tempo

janeiro 26, 2021


Aquela manhã já nascera de uma forma diferente, bem diferente das manhãs comuns que se repetiam no nosso cotidiano (se é que existe manhã comum).

Primeiro foram aquelas reluzentes notas de “um cruzeiro”, notas azuis, estalando de novas, com a efígie do Marquês de Tamandaré, jogadas no jardim, notas que davam pra comprar uns 4 “rasga-boca” ou uma gasosa na Casa Forte ou na mercearia Brasil, que ficava na esquina, quase ao lado da oficina de Dorgival sapateiro, o mesmo Dorgival que por pouco não morre de um infarto quando voltava da segunda sessão do Babilônia onde fora ver “Drácula, O Vampiro da Noite” com Christopher Lee. Na volta, descendo a Irineu Joffily em direção a sua oficina que também lhe servia de casa (Dorgival era solteiro), noite fria com aquela neblina que as vezes encobre toda a cidade, ele avista na praça aquela figura assustadora, se dirigindo em direção a ele, silhueta sublinhando a capa sombria igualzinha à do Drácula que acabara de ver no cinema. Dorgival sentiu as pernas tremendo, o sangue fugir da cabeça, tontura, mareio e... pimba, desmaiou no meio da praça bem perto do pedestal da estátua que fica no centro. Foi acordado pelo pobre vigia, o “papa sereno” da rua, com sua capa “abafa banana” que Dorgival acreditou ser do terrível conde da remota Transilvânia. Essa história ficou meses na boca da rua e Dorgival envergonhado passou um tempo sem dar as caras na oficina, além de ter jurado nunca mais ver um filme de vampiro.

Mas, voltando àquela manhã, e àquelas notas de “um cruzeiro”, pegamos as que pudemos, porém, a frustração foi grande ao vermos que na face de trás da nota tinha um carimbo vermelho anunciando a inauguração de uma nova loja na cidade, a nota era falsa embora confundisse qualquer um.

Os dóceis elefantes, por volta das 9:30h, comendo as folhas dos pés de fícus na calçada do clube provocaram em nós espanto e êxtase, aquela miragem idílica nos remeteu por instantes para dentro de um filme de Tarzan daqueles de Lex Barker ou Gordon Scott. Eram exatamente três os paquidermes, nem pequenos, nem grandes, digamos assim adolescentes. Pele de coloração castanho escuro, orelhas enormes (que logo nos lembraram “Dumbo”), e suas trombas sugando as folhas como aspiradores de pó e logo levando-as até a  boca.

Os elefantes eram de verdade, integravam a trupe do circo Garcia que estava em temporada na cidade, armado no açude Velho, e o tratador resolvera dar um passeio com eles nas proximidades.

Éramos uns cinco ou seis meninos, calças curtas, cabelos cortados “no zero” (na época era uma humilhação, signo de menor idade, de “guri” ... hoje está na moda e os rapazes se acham o máximo com o cabelo cortado assim, o tempora, o mores!), tínhamos, se muito, entre sete e nove anos de idade. Mas era justamente nessa idade que a idade tinha um peso, os meninos queriam envelhecer depressa, “virar rapazes”, para ter direito a usar calças compridas, dar adeus ao aviltante cabelo “zero” e ostentar vaidosamente uma “meia cabeleira” (corte que apenas tirava o excesso de cabelo sem raspar como no militarizado “zero”), ver filmes “censura 10 anos”, portar uma caneta “tinteiro” (os guris só usavam lápis grafite, aqueles que vão sendo apontados nas lapiseiras até desaparecerem por completo)  e, dependendo dos pais, exibir um desejado relógio Grão Duque no braço (os invejosos ironizavam chamando o relógio de “roscofe”).

Claudio era um menino que já usava calças compridas, camisa social ensacada, meia cabeleira, caneta tinteiro no bolso e um mais que visível relógio Grão Duque, pulseira preta, no braço esquerdo.

Aquela manhã já estava se acabando, faltavam uns 15 minutos para o meio-dia, a meninada estava no meio da rua justamente discutindo sobre idade, queriam saber quem era mais velho, um claro sinal de superioridade. De repente surge Claudio, apressado, consultando o Grão Duque, como se estivesse atrasado (para o almoço?). Ninguém nunca tinha perguntado a idade dele, ele não fazia parte da nossa “reca”, sempre só e distante porque era o único na rua com aquela estampa. A maioria supunha que Claudio deveria ter no máximo dez anos, o que já era uma grande vantagem sobre o grupo cujo mais velho não passava dos nove anos. Aproveitando a rara oportunidade de Claudio passar no meio da gente -estávamos em frente à casa dele- um de nós, não lembro qual, perguntou “Quantos anos tu tens Claudio?” Apressado, sem nem olhar para trás, Claudio respondeu rápido: “onze”.

Aquele número caiu sobre nós aterrorizante como o Drácula que quase mata o sapateiro Dorgival, frustrante como as notas azuis de “um cruzeiro”, pesado como os três elefantes.

Flecha certeira atingindo em cheio aquele inconsciente orgulho infantil e a turma acusou o golpe, de repente se abateu sobre todos um silêncio ensurdecedor, as nuvens no céu ficaram imóveis, o vendedor de cavaco chinês que passava na outra calçada silenciou o triângulo que usava como prefixo musical do seu negócio, o vento cessou de soprar e o tempo parou de avançar. A impressão era a de que a sinapse da terra tinha sofrido um bloqueio, interrompendo até a sua rotação.

A expressão de alguns daqueles meninos lembrava “O Grito” de Munch.

ONze, ONZe, ONZE…aquele número primo ecoava em nossas cabeças nos esmagando como reles pigmeus diante do gigante Claudio.

O número um é o menor de todos, mas emparelhado com outro um, como no caso do 11 de Claudio, era o maior dos números, nos tornando insignificantes.

Não lembro exatamente quanto tempo durou aquela lancinante estupefação, só sei que aos poucos a atmosfera impactante foi desvanecendo, a surdez momentânea (os ouvidos só conseguiam captar o som da palavra “onze”) sumiu com a buzinada de um Mercury, azul natier, modelo 1949, pneus faixa branca, que adentrou na rua e quase nos atropela. A “reca” de meninos dispersou-se quase que instantaneamente, a tarde já substituía a manhã. 

Saímos dali abalados, mas também embalados pelo sonho, melhor, esperando ansiosos o dia em que enfim também completaríamos onze anos, quem sabe com um reluzente Grão Duque no pulso.

5 comentários

  1. Essa postagem me fez voltar no tempo e relembrar minhas idas aos domingos ao Capitólio para assistir o filme "Os Trapalhões". Bons tempos que não voltam mais!

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  2. é uma experiência muito interessante adentrar estas memórias.

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  3. Parece que essa história está sempre acontecendo de tempos em tempos, só mudando de modas, de lugares.

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  4. Posso fechar os olhos e ver o circo chegando à cidade, Tarzan, os elefantes, a bodega sortida e suas miudezas, a oficina do sapateiro com milhares de troços, quinquilharias, a majestosa capa do guarda noturno, o azul nattier, e, é claro, os meninos, que com menos de dez anos já ganhavam a rua! Memória singular que toca os fios que tecem o social. Imagens abandonadas lá na fábrica das palavras, na boca da noite, como a imagem do sapateiro e do homem guardador da noite, elas reencontram o calor da vida nas horas do relógio desejado, símbolo de masculinidade. Poética construção narrativa que não olha pra trás, mas que nos conduz magicamente até o lugar da cena, espaço subjetivo em que o sujeito criança participa com seus pares dos termos de comparação com o outro, e, se metamorfoseando olha no fundo dos nossos olhos de elefantes. É coisa de cinema!!!

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  5. Das saudades de um tempo que a gente não viveu, surge uma nostalgia de um lugar lúdico que nós nunca deveríamos ter saído. Lindo texto, professor.

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