Ingressos na cristaleira, Brecht na calçada e um rifle de 15 tiros naquele ano atípico...

setembro 24, 2020


1961 foi um ano emblemático, o primeiro da década dos 60 que já se anunciava na boca do povo como a década que iria mudar tudo, e como mudou.

Lembro de um bordão inventado por não sei quem que dizia “Sessenta vem aí, negro vai virar macaco”; os negros davam o troco na mesma moeda: “E branco vai virar banana”.

A década também inaugurava (em fevereiro de 1962) a esperada Era de Aquário, regida pelo planeta Urano, o mais revolucionário dos astros do nosso sistema solar.

Foi nesse ano também que o astronauta russo Yuri Gagarin iniciou as viagens espaciais tripuladas e disse a frase que se tornou histórica: “A terra é azul”.

O ano de 1961 já se apresentava graficamente para nós, crianças entrando nos 8 anos, como um ano no mínimo engraçado. É que foi o único ano do século 20 que de cabeça para cima ou de cabeça para baixo não se alterava, dava sempre 1961. Tinha um anúncio colorido, página dupla, na revista “O Cruzeiro” apresentando o novo Aero-Willys 1961 (carro de luxo na época), nós nos divertíamos virando a revista de pernas pro ar para ver o 1961 aparecer inalterado mesmo de ponta-cabeça. 

Recém-saído do estudo das vogais fiquei confuso com aquele nome cheio de consoantes embaralhadas impresso na capa de um livro preto que um rapaz carregava debaixo do braço na porta da nossa casa: BERTOLT BRECHT. O rapaz, com a cara cheia de espinhas e uns óculos com lentes fundo-de-garrafa verdes era o estudante, futuro professor, Celso Pereira que perguntava para nós da calçada: “Dona Wanda está? ”. 

Foi nesse ano mágico, anunciador, que o Babilônia exibiu o western “Rifle de 15 tiros”, com Clint Walker. O título por si só já despertava uma enorme ansiedade, embora não tivesse nada a ver com o original “Fort Dobbs”, mas para nós o que valia era o título em português, brasileiro, a língua que a gente entendia.

Mesmo sabendo que as armas nos filmes de faroeste atiravam infinitamente sem precisar serem recarregadas, até então nunca existira um título de filme explicitando a capacidade de tiros, e esse rifle disparava 15 tiros de uma só vez, quase uma metralhadora.

(É importante deixar claro que nessa época sabíamos muito bem distinguir as armas artificiais do cinema das armas reais. Nós jamais desejamos ter um revólver ou rifle “de verdade” por causa dos vistos nos filmes, entendíamos perfeitamente aquele jogo cênico onde os “mortos” logo “ressuscitavam” na próxima sessão. Bem diferente de hoje onde se tenta fazer de armas mortais brinquedos nas mãos de adultos imaturos sem a mínima capacidade e discernimento para portá-las.)

Papai sentenciou: “esse, nós vamos ver no primeiro dia, na estreia” (que era a sexta-feira, o filme ficava em cartaz sexta, sábado e domingo), não precisa dizer que Rômulo e eu ficamos petrificados, como que em transe hipnótico. Acostumados a só frequentar o cinema nas matinais domingueiras, próprias para crianças na nossa idade, íamos de uma só vez ter direito a ver aquele filme tão esperado e, de quebra, numa sessão noturna, a famosa “soiree” (que traduzido quer dizer “tarde”, mas não sei por que se usava nos cartazes dos cinemas locais como indicativo de sessão noturna). Não era a primeira “soiree” que nós íamos, já tínhamos ido uma vez, a primeira vez, no Capitólio no ano anterior para ver “A flor que não morreu” (“Green Mansions”) com Audrey Hepburn e Anthony Perkins, um drama ambientado na selva amazônica com trilha sonora composta por Heitor Villa-Lobos.

A sessão noturna era um encantamento à parte, bem diferente das barulhentas matinais, público predominantemente adulto, mulheres com seus perfumes embriagadores, hálito de chicletes Adams (tutti-frutti ou hortelã), colares e pulseiras reluzentes adornando braços e pescoços, vestidos para “a noite”, penteados armados e sustentados pelo laquê. Os homens também se vestiam elegantemente, cabelos brilhando na base da brilhantina Glostora, perfume Lancaster, e nos dedos o inseparável cigarro Continental sem filtro, no qual davam longas tragadas, soltando a fumaça pelas narinas como dragões ou pela boca imitando vulcões (sim, era permitido fumar dentro dos cinemas). Enquanto a sessão não começava (eram duas sessões a noite: 19 e 21 horas) a música dos The Platters soava no ar evocando a década passada: “Smoke gets in your eyes” (essa combinava perfeitamente com a atmosfera do Capitólio enevoada de nicotina em seu estado físico gasoso), “My Prayer”, “Only You”, “The Great Pretender” e, ao apagar das luzes e abertura da grande cortina desnudando a tela gigante, "You’ll Never Know". Puro êxtase para aqueles gêmeos de 7 anos de idade.

Na terça-feira daquela semana cheia de expectativas, papai chegou na hora do almoço, abriu a cristaleira que ficava na sala de jantar, tirou do bolso os ingressos que havia comprado antecipadamente, uma inteira e duas meias, colocou dentro de um dos copos de cristal que minha mãe havia ganhado de presente de casamento e disse: “Pronto, os ingressos já estão aí, próxima sexta nós vamos!”. A cristaleira era baixa, feita de madeira envernizada, com um vidro duplo na frente, corrediço, à guisa de porta. De imediato nos ajoelhamos diante dela e ficamos como que hipnotizados olhando para aqueles ingressos cor-de-rosa, a inteira, amarelos as meias-entradas, enroscados dentro daquele translúcido copo que para nós, agora, brilhava ainda mais. Súbito a cristaleira, peça comum da decoração de nossa simples, mas maravilhosamente aconchegante casa, se transformou num altar de veneração onde genuflexos rendíamos graças aos ingressos todos os dias que antecederam a esperada sexta-feira. 

Faltando uns quinze minutos para o início da primeira sessão noturna, 19 horas, chegamos no Babilônia todo iluminado, cena rara para nós acostumados a ver os cinemas apenas de dia, os enormes  cartazes anunciando as próximas atrações cobriam toda a frente, nos livramos da fila porque os ingressos foram comprados antecipadamente, já no grande salão de exibição, com suas 750 poltronas, papai, como de hábito, sentou  na primeira fila, nós corremos para a frente, procurando os lugares mais próximos da imensa tela de 15 metros de largura por 9 metros de altura (lembrei agora do crítico e ensaísta Jean-Claude Bernardet que me disse uma vez que gostava de sentar bem perto da tela para ser “estuprado visualmente  pelas imagens”, tenho a impressão que todo cinéfilo pensa o mesmo). A música ambiente, que tocava antes de iniciar a sessão, era da orquestra de Perez Prado, mambos contagiantes como “El Manicero”, “Mambo Número 5”, “Patricia”, “Cherry Pink and Apple Blossom”, “Marilyn Monroe Mambo”, “Moliendo Café”... o Babilônia tinha um atrativo a mais,  a música silenciava, as luzes iam se apagando no interior da grande sala,  um gongo soava três vezes enquanto a cortina de cor bordô com uma barra amarelo-ouro ia deslizando pela esquerda e pela direita para revelar a imaculada tela branca.

Depois do cinejornal “Atualidades Atlântida”, mostrando inaugurações de obras, desfiles de moda e um jogo do campeonato carioca de futebol (com 30 dias de atraso) vieram os trailers dos filmes a serem exibidos em breve, na sequência apareceu o logotipo em preto e branco da Warner Brothers iniciando “O rifle de 15 tiros”...

8 comentários

  1. Quanta riqueza de detalhes, d'uma época em que tudo, era novo, e extremamente revolucionário. Emocionante o texto. Parabéns mestre Rometo.

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  2. Bravo, Bravíssimo!!!
    Além de resgatar palavras e imagens soterradas da memória coletiva, o texto cristalino em meias-entradas, combinações de emotivas cores, texturas, perfumes e músicas vibrantes, num encadeamento de singular realce, transportam-nos para o cinema. Um filme lindo! Obrigada, Romero.
    A Imagem do Professor Celso Pereira com o livro BERTOLD BRECHT debaixo do braço perguntando para os gêmeos da calçada: “Dona Wanda está?” É genial! Grandes Professores! Linda homenagem!

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    1. A sensibilidade da leitura engrandece o texto.
      Obrigado pelo sensível comentário.

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  3. Até eu fiquei na expectativa pra assistir "O rifle de 15 tiros" ehhehehehe

    Grande texto, professor!

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  4. Deu pra imaginar os detalhes da sua narrativa.
    Bem como deu vontade de assistir ao filme, de preferência no Babilônia, mascar os chicletes, ouvir as músicas... Muito bom!!!

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  5. Que riqueza de detalhes. Vivi emoções semelhantes. Obrigada!!

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