“Pixote” 40 anos: revendo um clássico do naturalismo no cinema brasileiro
maio 24, 2020Hector Babenco no prólogo do filme "Pixote, A Lei do Mais Fraco" (Fotograma do filme) |
À guisa de introdução: amparados no esclarecedor trabalho de Flora Süssekind, “Tal Brasil, qual romance? uma ideologia estética e sua história: o naturalismo” (Achiamé, 1984), e em outros estudos, apresentamos em 2008 uma dissertação intitulada “Um trânsito naturalista: da literatura ao cinema brasileiro” para obtenção do grau de Mestre no mestrado Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba-Campina Grande. Parte desse trabalho, revista e ampliada, publicamos agora neste blog por ocasião dos 40 anos do lançamento do laureado filme brasileiro “Pixote, A Lei do Mais Fraco”, dirigido por Hector Babenco (disponível logo abaixo):
O processo narrativo naturalista permite ocultar a mão de quem escreve tornando o texto não uma construção literária, mas um relato fiel de um fato baseado numa realidade pré-existente. Ao esconder a voz do narrador, diluindo-a entre os personagens, o texto naturalista se credencia como uma espécie de porta-voz da realidade, portanto da verdade, a partir de um ponto de vista onipresente e onisciente, como o ponto de vista de um Deus. Um romance, ou um filme, articulado nessa perspectiva, oferece ao leitor/espectador não especializado uma visão de mundo pronta e acabada, alicerçada no cientificismo e/ou na linguagem objetiva e coloquial do jornalismo. Embora seja verdade que esses elementos, cientificismo e jornalismo, foram no princípio do naturalismo, positivos, pois ajudaram a romper os códigos literários vigentes, a posteriori acabaram por bloquear no nível da estética qualquer possibilidade de reflexão crítica por parte desse leitor/espectador que recebe a informação produzida por essa forma literária/cinematográfica como uma fotografia da realidade. O relato, a descrição, a linguagem coloquial são elementos do naturalismo na literatura e no cinema que promovem uma aproximação, até mesmo uma empatia com o leitor/espectador, mergulhando-o não numa obra ficcional, mas num fragmento da realidade captado e escrito com base no determinismo científico/jornalístico. Essa “expressão do real”, produzida a partir da manipulação dos elementos constitutivos da linguagem narrativa, se apresenta ao leitor/espectador comum não como uma interpretação da realidade, um ponto de vista, mas sim como uma verdade incontestável, já que o narrador está oculto, ora por trás do veredicto científico, ora encoberto pelo testemunho insofismável da reportagem jornalística.
Quando um romance tenta ocultar sua própria ficcionalidade em prol de uma maior
referencialidade, talvez os seus grandes modelos estejam efetivamente na
ciência e na informação jornalística, via de regra consideradas paradigmas da
objetividade e da veracidade. O leitor de uma obra científica ou de uma noticia
de jornal pouco observa a linguagem com que foram escritos, conquanto lhe
transmitam uma impressão de veracidade.
(SÜSSEKIND 1984, p. 37)
O naturalismo, como estética, saltou das páginas dos romances para a tela do cinema nacional ainda no começo do século 20.
A crônica policial dos jornais vai fornecer os temas que alicerçam o gênero policial nesses filmes, são vários os títulos baseados em crimes reais que abalaram e comoveram a sociedade na época, entre os mais famosos temos “O crime da mala”, dirigido por Francisco Madrigano em 1928, esse mesmo assunto rendeu também versões anteriores nos anos de 1908 e 1909.
Nos anos 1960, cineastas como JB Tanko, Rex Endsleigh, Aurélio Teixeira e Roberto Farias dão continuidade a esse filão de grande apelo popular e produzem filmes como “Massacre no Supermercado”, “Crime de Amor”, “Mineirinho Vivo ou Morto” e “Assalto ao Trem Pagador”.
Ainda na década dos 60, os jovens diretores do grupo conhecido como Cinema Novo também buscaram no naturalismo o suporte estético para seus filmes, neste caso as produções que mais se destacaram abordaram temas regionalistas como o cangaço, messianismo, seca, migração, latifúndio.
Nos anos 1970 é grande a produção de filmes assentados na estética naturalista tendo como apoio a literatura e a crônica policial dos jornais. Os realizadores Antonio Calmon, Miguel Borges, Jece Valadão e Miguel Faria Jr. dirigem filmes como “Eu Matei Lucio Flávio”, “O Caso Claudia”, “Os Amores da Pantera” e “República dos Assassinos”. O cineasta argentino, naturalizado brasileiro, Hector Babenco, é o principal nome dessa retomada do naturalismo e do gênero policial no cinema brasileiro. Seus filmes, além do apurado esmero técnico e domínio da linguagem, dialogam com o grande público que frequenta cinemas e alcançam inclusive plateias internacionais.
Ele dirige “Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia” em 1977, uma parceria exitosa com o escritor José Louzeiro, autor do livro homônimo que serviu de base para o roteiro escrito por ele, Jorge Durán e o próprio Babenco.
Dois anos depois a parceria se repete numa produção que lotou os cinemas brasileiros e teve enorme repercussão internacional, premiando nos Estados Unidos a atriz Marilia Pera e o diretor, com direito ainda a indicação ao Globo de Ouro e mais 4 prêmios de melhor filme estrangeiro em festivais na Espanha, Suiça, França e Austrália. Esse filme é “Pixote, A Lei do Mais Fraco”, aclamado pela crítica e pelo público.
O filme “Pixote, A Lei do Mais Fraco (1980)”, com argumento e roteiro de Hector Babenco e Jorge Duran, inspirado no livro “A Infância dos Mortos (1975)” de José Louzeiro, começa com um prólogo onde o diretor Babenco aparece numa favela, segurando um livro numa das mãos, e dirigindo-se a câmera, numa postura que lembra os repórteres de televisão. Ele fala sobre a questão dos menores infratores no Brasil citando estatísticas e relacionando-as à vida dessas crianças na favela. Segundo as palavras do cineasta, aquele abandono tem uma causa: os menores são filhos dos operários que trabalham o dia inteiro nas fábricas que circundam a favela, como passam a maior parte do dia, sós, cuidados apenas por uma irmã mais velha ou por uma vizinha paga para isso, cometem delitos. A legislação brasileira é branda com os menores de 18 anos que cometem infrações, nos informa Babenco, por isso eles são utilizados por delinquentes adultos para cometer os crimes pelos quais não serão punidos rigorosamente. Em certo momento, o diretor cita textualmente o nome de Fernando (Fernando Ramos da Silva, ator que interpreta o Pixote) incluindo-o entre os moradores da favela que é mostrada. Na imagem vemos Fernando e sua mãe, observados à distância pela câmera, mudos. Babenco nos informa que Fernando mora com a mãe e mais nove irmãos naquele barraco e termina sua introdução sociológica dizendo que o filme que vamos ver é interpretado por menores oriundos daquele universo.
Um dado relevante aqui se coloca: o menino Fernando, em sua primeira e última experiência cinematográfica, aparece neste prólogo ao lado da mãe na porta do barraco em que moram na vida real, ambos estão calados.O narrador informa aos espectadores que o protagonista do filme é oriundo dessa favela que é mostrada. Essa aparição de Fernando e sua mãe, mudos, sendo observados à distância pela câmera de Babenco, revela logo no início a grande distância- de classes – que separa o realizador do seu jovem ator. A imagem também adquire, involuntariamente, um tom irônico: no momento em que o filme assume um caráter documental, portanto teoricamente mais próximo da realidade, a fala é negada ao verdadeiro Pixote (Fernando Ramos); quando a narrativa ficcional é deflagrada logo após a apresentação dos créditos do filme, Fernando, oculto sob a pele de Pixote, ganha voz para repetir as falas escritas por Louzeiro, Babenco e Duran. O naturalismo cinematográfico reproduz a realidade para tê-la sob controle e, neste caso, ocultá-la.
Fernando se tornou, para além do filme, uma figura tragicamente simbólica, pois, como é do nosso conhecimento, acabou assassinado pela polícia paulista sete anos depois do lançamento da película (a prematura morte de Fernando Ramos da Silva gerou um filme intitulado “Quem Matou Pixote?”, feito em 1996 por José Joffily).
Essa abertura, em forma de documentário, de um filme de ficção, baseado noutra obra ficcional (o romance de Louzeiro) denota objetivamente a opção do cineasta pela estética naturalista. O discurso de cientista social empregado por Babenco tem como objetivo reforçar a impressão de realidade na história que está para começar, é como se dissesse “tudo o que vocês vão ver é verdade, tem base científica, eu não inventei nada”. A busca de um signo transparente, como já vimos, é uma das características do naturalismo no cinema.
As primeiras cenas confirmam a opção estética do diretor: os jovens reclusos numa unidade correcional assistem a um filme na televisão, é um filme em preto-e-branco, a cena que vemos na diegese é de uma luta violenta entre dois homens. Esse recurso, utilizado logo na primeira sequência de “Pixote”, tem como finalidade separar a violência mediatizada pelo filme exibido na TV, da violência que vamos assistir no filme que está começando. É um truque narrativo que reforça a impressão de realidade e o naturalismo da representação, o filme mostrado na televisão é “artificial”, exibe uma luta dramatizada numa tela pequena e em cores que não correspondem ao mundo real: “A iconografia do vídeo nos dá a impressão de estar diante de um universo de imagens e não diante de uma realidade preexistente” (Machado, 1998, p. 209).
O filme, ao contrário, quer nos dar a impressão de que foi totalmente moldado a partir de uma realidade preexistente, não a romanceada pelo escritor Louzeiro, mas a apresentada “cientificamente” no prólogo pelo cineasta.
O mesmo recurso do televisor, com uma ligeira variação, é usado noutro filme de Babenco feito em 2003, “Carandiru”.
Um personagem, destacado numa sequência inteira dedicada a ele, nos chama a atenção na primeira meia hora do filme, é o Roberto Carlos dos Pobres. O jovem cantor, aleijado de uma perna, também é um dos internos da instituição. Apesar de estarem juntos confinados no mesmo espaço, o cantor é bem diferente dos seus colegas. A diferença dele para os outros menores se revela nas roupas “de artista” que sempre veste, no cabelo longo espelhado no ídolo do qual tomou seu nome emprestado e no fato de ser um cantor.
Por ser um cantor, Roberto Carlos dos Pobres domina o aparato (microfone, pedestal, banda que o acompanha) que faz a mediação entre ele, artista, e o público formado pelos colegas internos, familiares, funcionários e dirigentes da instituição. Nesse ponto o personagem-cantor se distancia dos outros meninos e se aproxima do narrador do filme, também artista e com domínio do aparato (câmera, tripé, iluminadores etc.) que faz a mediação entre o universo filmado e nós que vemos o filme. Conscientemente ou não, não importa, o narrador se projeta e projeta seu filme nesse personagem. O auto denominado Roberto Carlos dos Pobres se assume como uma cópia (tosca) do cantor original. Ele não tem a voz sequer parecida com a de Roberto Carlos, a semelhança se dá pela imagem externa, a aparência: o cabelo comprido e a perna mecânica (que Roberto Carlos ainda hoje oculta e é tida como um trauma até agora não resolvido em sua vida pessoal). Para ajudar a compor o tipo “sósia”, imita os gestos e trejeitos do artista no modo de pegar o microfone e agradecer os aplausos, nada mais. O filme “Pixote, A Lei do Mais Fraco” é uma cópia da realidade onde vivem e morrem os menores infratores de São Paulo, é o Roberto Carlos dos Pobres às avessas, uma espécie de Pixote dos Ricos (ao menos da classe média instruída que tem condições de pagar ingresso num cinema). Por mais que tente dissimular o abismo que o separa da realidade enfocada, como por exemplo na cena da abertura da narrativa (já comentada por nós) em que aparece a televisão exibindo um filme, Babenco, e sua projeção, o adolescente cantor, expõem a limitação da arte (ou pelo menos esse tipo de arte) como agente transformador da realidade que denuncia (e aqui não é demais lembrar o assassinato de Fernando Ramos pela polícia depois de ter participado do filme). Na cena da fuga dos menores infratores, portanto um momento de transformação da realidade vivida por eles, Roberto Carlos dos Pobres desiste de acompanhar os colegas dizendo: “Eu fico. Prá mim lá fora vai ser pior” A câmera/ Babenco fica com ele. Lá fora é, entre outros cenários da cidade grande, a favela que nos é apresentada no início do filme, não por seus moradores (como já vimos, Fernando Ramos e sua mãe aparecem mudos no prólogo do filme), mas pelo cineasta intelectual da classe média (como esse escriba que vos fala), intérprete da classe dominante, vestindo um imaculado conjunto de sapatos, calça e camisa brancas, proferindo um discurso onde predomina o vocabulário sociológico, citando estatísticas cheias de números e dados sobre a cidade de São Paulo e seus menores abandonados.
No momento do impasse, do enfrentamento da realidade e da busca de uma solução extrema materializada na fuga do reformatório, o artista revela sua impotência diante da possibilidade concreta de interferir na História preferindo ficar enclausurado no ambiente estável da mediação ficcional (instituição/filme), cercado pelos aparatos que manipula com segurança e o conforto do aplauso do público (incluindo autoridades constituídas), que mesmo sabendo que se trata de uma representação, de uma imitação da vida real, admira sua performance natural. Por sua vez, esse mesmo público também se sente seguro e recompensado “no escurinho do cinema/chupando drops de anis/longe de qualquer problema”, como canta Rita Lee na música “Flagra” (Som Livre, 1982). O naturalismo assume neste exemplo cinematográfico uma função conservadora, de opção pelo conformismo, da contemplação em vez da ação.
Embora o filme se esforce (no plano da reconstituição naturalista do universo habitado pelos “pixotes”) para demonstrar uma intimidade com a realidade enfocada, o resultado é frágil: o final de “Pixote, A Lei do Mais Fraco” reforça, mais uma vez, a distância, inclusive física, existente entre o mundo do personagem e o mundo do realizador do filme. A câmera, presa ao tripé, acompanha em panorâmica, da esquerda para a direita, a caminhada de Pixote pela linha do trem, a certa altura a câmera encerra seu movimento e se detém observando o deslocamento do menino de longe. Pixote brinca de se equilibrar nos trilhos como se fosse uma corda bamba de circo, o movimento do menino tentando se equilibrar nos trilhos, quase uma coreografia, contrasta explicitamente com a câmera imobilizada, contemplando em prudente distância a ação (a cena lembra outra, a do Roberto Carlos dos Pobres no momento da fuga dos internos, ele desiste da fuga e fica observando os colegas ganharem o mundo). Na imagem que compõe o fim do filme, a linha férrea que está mais próxima do aparelho de filmar nos fornece uma metáfora visual que se encaixa perfeitamente na dicotomia estabelecida entre personagem e realizador: são as linhas paralelas que andam juntas, mas nunca se tocam.
Cena de “Pixote, A Lei do Mais Fraco” (Fotograma do filme) |
2 comentários
Excelente texto, professor. A dicotomia do cinema naturalista se encontra com os paradigmas do documentário enquanto representação da realidade, mas acaba se encontrando com um dilema muito semelhante à imagem das linhas de trem que andam paralelas, mas mesmo estando um pouco mais próximas, ainda não se tocam.
ResponderExcluirAo que me parece, segundo a crítica, falta costura na produção simbólica, aquela costura fina que se faz de forma artesanal, algo que pudesse enlaçar o universal da condição humana (que é o desamparo), o particular sintoma social da comunidade e o singular do sofrimento da criança. O ato de verdadeira criação que sempre abre perspectivas infinitas e é capaz de visualizar saídas, é transformador.
ResponderExcluirA ênfase midiática, presente como uma sombra no filme, vincula os atos infracionais dos garotos a uma situação conhecida na imprensa como “escalada da violência”. Se existe uma escalada da violência, é sempre de cima pra baixo. A escalada da violência nas comunidades não começa com o crime, ela começa com a injustiça, pois a injustiça está sempre grávida de violências.
Faltam palavras para assombrar as ciências, pra acordar o mundo e fazer aparecer o abandono constante, não apenas o abandono simbólico/imaginário da expulsão do útero materno que é condição da vida humana. Sobra a sombra, assombração, “aparição de Fernando e sua mãe, mudos”. É essa mudez, delicadamente sublinhada, que grita. Mas vive a arte, na poética que traduz generosamente a linguagem cinematográfica em forma de análise crítica.