O Cinema deve Desculpas a Richard Wagner

maio 08, 2020

(Foto: Internet / Color by Klimbim)

O compositor alemão Richard Wagner morreu 56 anos antes do início da escalada nazista na tresloucada aventura da Segunda Guerra Mundial, e doze anos antes dos irmãos Lumière apresentarem para uma plateia assombrada e maravilhada uma engenhoca batizada por eles de Cinematographo. Mesmo com esse lapso temporal, Wagner ainda hoje é identificado por muitos como racista e/ou nazista. A maior parte desse injusto desdouro é de inteira responsabilidade do cinema.

É verdade que Adolf Hitler era um admirador da Obra de Wagner e utilizava suas músicas em solenidades do nazismo para tentar enobrecer esses eventos. Sabe-se também que as estreias das óperas dele em Berlim eram acontecimentos que levavam ao teatro, além do próprio Hitler, a elite do nacional-socialismo. Contra isso o compositor nada pode fazer porque já se encontrava morto e sepultado a mais de meio século.

Os anos 1930 marcam a ascensão de Adolf Hitler ao poder, o povo alemão completamente iludido com as promessas de “pátria amada”, “Alemanha acima de tudo”, “os deuses estão conosco” e outras artimanhas bem urdidas pelos membros do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, o terrível NSDAP, ou simplesmente Nazismo, caiu na conversa mole e mentirosa de um desequilibrado medíocre que achava ter sido ungido por Deus para ser ditador do mundo, e o colocou no mais alto posto do governo alemão, a catástrofe  que se seguiu a isso é do conhecimento de todos (note-se que  o estímulo e a exaltação a esse totalitarismo/autoritarismo não morreu com o fim da guerra há 75 anos  e insiste em prevalecer inclusive entre nós).

O Nazismo, uma mistura confusa de seita  e partido político, sequestrou toda a Obra de Wagner e a adaptou aos seus sórdidos propósitos, sem o consentimento dele é óbvio. Também procurou recuperar as tradições germânicas, incluindo o panteão nórdico e seus deuses e símbolos, elementos recorrentes nas óperas de Wagner. A cruz suástica, por exemplo, é tida erroneamente como uma criação dos nazistas, na verdade esse símbolo religioso tem mais de 5 mil anos e foi outro elemento sequestrado pelo NSDAP logo em sua fundação em 1920, por sugestão do poeta Guido von List, um auto enganado do nacional-socialismo.

Esse gesto equivocado dos nazistas de surrupiar as óperas jamais contaria com a permissão de Wagner se vivo estivesse. Para se ter uma ideia do rigor com que o compositor tratava sua música, ele construiu um teatro na cidade de Bayreuth, norte da Alemanha, só para apresentações exclusivas de suas óperas. O teatro, no estilo barroco, obra do arquiteto Gottfried Semper, sob a supervisão do próprio Wagner, é uma espécie de templo que o compositor austríaco imaginou para suas peças e enquanto viveu nenhuma delas foi apresentada fora dele. Atualmente se realiza ali, todo ano, o concorrido Festival de Bayreuth que atrai espectadores de todo o mundo e é tido como meca dos wagnerianos. Esse mais que teatro, uma casa de ópera, tem bancos de madeira rústica e nenhum tipo de acolchoado como é comum em salas do gênero. Com isso Wagner pretendia que o espectador não se distraísse com nada, nem com o conforto de uma poltrona tradicional, toda atenção deveria estar concentrada em apenas um ponto: o palco onde se desenrola a ópera. 

O fato de Hitler ser um admirador da música de Wagner e utilizá-la para seus nefastos propósitos não faz do compositor um nazista, mas a má fama pegou e o cinema ajudou a propagá-la.

Compositor extraordinário de óperas que transcendem a simples musicalidade, suas aberturas, coros e árias foram surripilhadas pela indústria muito antes do advento do cinema sonoro.

Bem  antes da tragédia nazista, o  cineasta D.W. Griffith colocou a Orquestra Filarmonica de Nova York dentro de um cinema em 1915 para acompanhar as imagens do clássico racista “O Nascimento de uma nação” , um mastodonte de celuloide com nada menos que 195 minutos de duração e cuja eletrizante sequência final mostra os cavaleiros da seita racista Ku-Klux-Klan (entidade terrorista da extrema direita americana) rumando céleres em seus cavalos para salvar uma jovem inocente branca das mãos de um maléfico  estuprador negro( vale destacar que o negro era representado por um ator branco pintado, uma famigerada técnica conhecida como “black face” porque nos primórdios do cinema não era permitido   atores negros nos filmes ). A sequência, que arrancou demorados aplausos da delirante plateia integralmente formada por espectadores brancos, era toda ela ao som da Cavalgada das Valquírias (em alemão: Walkürenritt ou Ritt der Walküren),  leitmotiv de Wagner que abre o terceiro ato da ópera A Valquíria (Die Walküre), a segunda da tetralogia intitulada O anel dos Nibelungos (Der Ring des Nibelungen) . A partir daí, Wagner já recebeu o rótulo de “compositor racista”, embora já estivesse quieto, de olhos bem fechados, sete palmos abaixo do chão, desde o ano de 1883.

Depois dessa estreia que deturpou completamente o sentido original da ópera, dezenas de seriados de aventuras, faroestes “b” e policiais idem, usaram temas de Wagner para turbinar as cenas de ação, notadamente as desembestadas perseguições a cavalo ou automóvel, e o Preludio do Terceiro Ato de “Lohengrin”, por exemplo, foi usado à exaustão.

No princípio da indústria o cinema teve de se reinventar para poder sobreviver, surgiu como um espetáculo eminentemente popular, as salas improvisadas e até tendas de lona armadas na periferia eram o palco para exibição da nascente forma de entretenimento. Para conquistar o público mais elitizado, a burguesia urbana alfabetizada, acostumada a frequentar teatros, e totalmente avessa aos salões e tendas da periferia, os produtores, também acossados pela nascente censura imposta pelo famoso “Código Hays” que instituía normas morais para os filmes, vão buscar na literatura o refúgio seguro para essa nova produção. Além da literatura a música é outro recurso usado para atrair e fixar o hábito de ir ao cinema nesse novo público que começa a ser conquistado. A literatura fornece o esteio necessário para essa guinada, tornando os filmes mais próximos da nova camada de espectadores que começa a surgir nas salas luxuosas que proliferam no centro comercial das grandes cidades O modelo para as trilhas sonoras desses novos filmes vem da música erudita e da ópera, os compositores criam temas que são verdadeiros pastiches das obras clássicas, mas os originais também são inseridos nas trilhas e Richard Wagner é o campeão absoluto em termos de trilha sonora não original para o cinema.

O compositor austro-húngaro Max Steiner, mestre das trilhas sonoras com mais de 300 partituras assinadas e que incluem títulos como “Casablanca”, “E o Vento Levou” e “O Candelabro Italiano”, disse em meados dos anos 1950 do século passado que Wagner, se estivesse vivo no século 20, “teria sido o maior compositor de músicas para o cinema”. Não foi, mas seguramente foi o que mais influenciou os compositores de música para filmes.

O também austro-húngaro Miklós Rózsa,  o ucraniano Dimitri Tiomkin e os americanos Bernard Herrmann, Elmer Bernstein, Jerome Moross, Alfred Newman e Victor Young, são exemplos da influência da música wagneriana na chamada sétima arte.

O cinema, contudo, não retribuiu o gênio da música a altura de sua magnífica obra, o que vemos é uma deturpação total de suas óperas usadas inadequadamente como simples sonoplastia para embalar as cenas de ação, ou, pior ainda, como comentário equivocado de caráter político/religioso, evocando sempre o estigma do nazismo, ou glorificando o racismo como o fez Griffith em “O Nascimento de uma Nação”.

No principal documentário produzido pelos nazistas, “O Triunfo da Vontade”, roteirizado e dirigido pela competente Leni Riefenstahl em 1934, a música de Wagner integra a trilha sonora do começo ao fim do filme. A edição quer dar a impressão que os trechos de óperas usados foram feitos originalmente para o documentário tal é o sincronismo com as cenas.

A modelar sequência de abertura de “O Triunfo da Vontade” une mística, política, ideologia, patriotismo e histerismo  tudo isso embalado pela música clássica que pontua e reforça o poder persuasivo das imagens que mostram o “espírito” de Hitler descendo da morada dos deusas, o Valhalla coberto de nuvens brancas, para se materializar entre os mortais da terra que o aclamam delirantemente em sua chegada na cidade de Nuremberg para participar do 6° Congresso do Partido Nazista.

O hoje clássico documentário une forma e conteúdo, entranhados harmoniosamente, e a falsificação da música de Wagner, retirada totalmente de seu contexto, para tentar dar legitimidade a fraude.

Talvez essa impactante montagem, nitidamente ideológica, tenha influenciado inconscientemente o jovem Federico Fellini, que cresceu sob a sombra do fascismo de Mussolini, aliado de primeira hora do nazismo de Hitler. Em seu oitavo filme, o premiadíssimo “8 e Meio”, lançado em 1963, Fellini reforça essa imagem negativa que o cinema impôs a Wagner ao colocar um trecho da Cavalgada das Valquírias na cena em que o personagem principal, o cineasta Guido, alter ego de Fellini, “doma” de chicote em punho as mulheres que avançam sobre ele como feras num picadeiro de um circo.

O leitmov de Wagner que abre o terceiro ato da ópera A Valquíria foi usado também como sinônimo de nazismo no épico de guerra Apocalypse Now de Francis Ford Coppola. A produção de 1979, roteirizada por John Milius, uma releitura completamente livre do romance Coração das Trevas do ucraniano, naturalizado inglês, Joseph Conrad, transfere do Congo Belga na África, onde se desenrola a ação original do livro, para o Vietnam dos anos 1960.

Uma das sequencias mais impactantes do filme, tanto no sentido visual como emocional, é o bombardeio com Napalm (bombas incendiárias de alto poder destrutivo) de uma aldeia vietnamita feito a partir de helicópteros do exército invasor norte-americano. A sequência inteira é ao som da Cavalgada das Valquírias, Coppola quis com isso fazer uma alusão ao nazismo, igualando o ataque americano às blitzen da Luftwaffe de Hitler, mas Wagner não merece esse ultraje.

De Griffith a Coppola, mais de meio século de cinema estigmatizando a obra transcendental de Richard Wagner sem a mínima chance de defesa por parte do compositor.

Já passou da hora de o cinema pedir desculpa ao gênio saxão, nascido em 22 de maio de 1813 em Lípsia, Alemanha e falecido em 13 de fevereiro de 1883 em Veneza, Itália.

Escolhemos estes quatro filmes pela importância e penetração deles no grande público, um está na lista dos filmes “preservados para sempre” do American Film Institute e Biblioteca do Congresso Americano, outro ganhou o Oscar de melhor filme em língua não inglesa, o terceiro foi agraciado com a Palma de Ouro, prêmio maior do mais que importante Festival de Cannes, e o quarto é o mais aclamado exemplo de propaganda política em toda a história do cinema. Todos estão disponíveis em DVD, Blu Ray ou em plataformas de Streaming. 

P.S. Uma exceção que confirma a regra é “Excalibur” de John Boorman, notável filme baseado no livro lançado em 1485 "Le Morte d'Arthur" de Thomas Malory sobre o Rei Arthur e seus cavaleiros.

Esse filme, lançado em 1981, utiliza a música de Wagner mas totalmente dentro do contexto para a qual foi produzida.  O tema da “Música Fúnebre de Siegfried” que ouvimos na inspirada sequência final – da ópera “O Crepúsculo dos Deuses”, quarta e última parte da tetralogia “O Anel dos Libelungos”, se encaixa perfeitamente na narrativa do filme que trata também de temas presentes nas óperas de Wagner, como o Santo Graal por exemplo. “Excalibur” está disponível em DVD, Blu Ray e em plataformas de streaming.

2 comentários

  1. Ótimo texto. Eu tinha restrições ao compositor Wagner por pura ignorância. Seu texto clareou o meu pensamento. Obrigada!

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  2. Apontar as circunstâncias de falsas acusações é um compromisso social a ser seguido cotidianamente, mas não é tarefa fácil. Sobretudo, porque sempre proliferam as acusações em que os fatos objetivos deixam de ter importância na formação da opinião pública para dar lugar aos apelos da emoção e da crença pessoal e a discussão muitas vezes descamba para o irracional. Da insuficiência para a antecipação e mediante processos onipresentes de vigilância digital, algoritmos e robôs, a fábrica de falsidades destrutivas em larga escala prolifera.
    Elogiável é a crítica que toca questões delicadas sem perder o rigor refinado. Excelente texto, bastante esclarecedor.

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