“O OFICIAL E O ESPIÃO”, qualquer semelhança com o presente não terá sido mera coincidência

abril 18, 2020

O diretor Roman Polanski orienta o ator Jean Dujardin para uma cena do filme (foto: divulgação)
O rumoroso “Caso Dreyfus” mereceu a atenção do cinema ainda em seu desenrolar. Já em 1899, apenas cinco anos depois da primeira condenação do capitão do exército francês, Georges Méliès lançava “L'affaire Dreyfus”, uma dramatização encenada do processo que sacudiu a república francesa no final do século 19. Em 1930 os alemães, personagens diretos do processo, lançam “Dreyfus” um drama histórico com 1 hora e 55 minutos de duração, dirigido pelo austríaco Richard Oswald. No ano seguinte é a vez da Inglaterra mostrar sua versão do caso, o filme também intitulado “Dreyfus”, dirigido a quatro mãos por F.W. Kraemer e Milton Rosmer, foi lançado em Londres no dia 20 de abril de 1931.

Seis anos depois é a vez de Hollywood registrar o tema no biográfico “A Vida de Emile Zola”, que acabou ganhando a estatueta de Melhor Filme na décima edição do prêmio Oscar.

Essa quinta versão cinematográfica do Caso Dreyfus, dirigida por Roman Polanski e tendo como base a novela de Robert Harris (“O escritor fantasma”), que inclusive também escreveu o roteiro do filme juntamente com Polanski, mergulha profundamente na intimidade do poder, perscrutando a arquitetura processual que gerou a (falsa) acusação ao Capitão judeu Alfred Dreyfus.

O belo e significativo plano-geral que abre o filme, com a câmera posicionada numa distância que abrange todo campo visual do pátio do quartel na emblemática cena da humilhante cerimonia da degradação de Dreyfus, traduz em imagens o necessário distanciamento temporal, fermento da história, que existe entre os fatos acontecidos e a posterior interpretação histórica.

Visualmente a sequência de abertura procura mimetizar o quadro “La dégradation de Dreyfusa”, pintura clássica de Roger-Violett que registra o momento culminante daquela liturgia militar: a quebra da espada que sacramenta o divórcio definitivo entre o exército e o Capitão expulso por traição.

O “Oficial e o Espião” não é um filme sobre Dreyfus (mero coadjuvante na trama filmada por Polanski), tão pouco é mais um relato sobre Emile Zola como no filme dirigido por William Dieterle em 1937, com Paul Muni interpretando o intrépido romancista autor do heróico manifesto “Eu acuso!” que foi uma peça-chave na mudança de rumos no processo contra o Capitão Alfred Dreyfus.

Roman Polanski, aos 86 anos de idade e em seu vigésimo-segundo longa-metragem, se debruça sobre a engrenagem política-jurídica-militar-religiosa-social que produz culpados ou inocentes, não importando muito o móvel da ação,  sob a bandeira de um falso patriotismo.

O que é exposto nos 132 minutos do filme, enriquecido extraordinariamente pela fotografia em tons sombrios nos interiores e sóbria nas cores dos poucos exteriores, trabalho do também polonês Pawel Edelman, que já havia feito com Polanski “O Pianista” (2002), “Oliver Twist” (2005) e “O Escritor Fantasma” (2010), é a utilização dos aparatos do Estado em beneficio não da justiça ou da verdade, mas dos interesses daqueles que momentaneamente estão exercendo o poder.

A produção de peças condenatórias injustas, a partir dos instrumentos legais, do arcabouço jurídico, dos dogmas religiosos e da divulgação em massa por certa parte da imprensa alinhada com os poderosos da hora (e aqui não tenho como não lembrar a condenação e morte na fogueira da inquisição da inocente Joana Darc, em 30 de maio de 1431), é o grande tema que “O Oficial e o Espião” nos apresenta. Atualizando desse modo, trazendo para o século 21, a ainda não resolvida questão do atropelamento da Constituição ao sabor do autoritarismo e degeneração dos princípios éticos e morais que deveriam nortear o poder por parte das autoridades constituídas. O resultado desse grave desvio incentiva linchamentos morais na voga  das ideologias vigentes e dos fanatismos que hoje, por exemplo, geram fake news em série, dossiês forjados, interceptações e gravações telefônicas ilegais e sua posterior divulgação sem nenhum amparo da legislação vigente, condenações sumárias no chamado “tribunal das redes sociais”, difusão de informações manipuladas, apócrifas, como se fossem verdades absolutas, sentenças condenatórias sem provas baseadas apenas em evidências. Aliás, um dos personagens é confrontado sobre a fragilidade das provas apresentadas contra o Capitão Dreyfus, acuado ele diz: “você precisa ver as evidências que temos contra esse judeu”. Qualquer semelhança com o nosso presente, não terá sido mera coincidência.

A revelação dos porões do poder e seus inúmeros personagens, desde Bachir um velho soldado sonolento que manipula as chaves da repartição de acordo com os interesses e as pessoas em jogo, até os mais graduados militares da caserna, como o obcecado major Henry e o ardiloso general Gonse, é a grande contribuição desse bem construído filme, com uma mise-en-scène e uma reconstituição de época irretocáveis, contribuição notável para a compreensão do sistema que alimenta o poder e seus expedientes escusos para perpetuação e legitimação  desse mesmo poder.

Nesse aparato oficial não falta a participação da ciência, usada não para aferir a veracidade dos documentos comprobatórios, mas sim para legitimar provas forjadas. A ciência é representada no filme pelo grafólogo, especialista em caligrafia, que num parecer “técnico” (e como está em voga essa palavra entre nós hoje) afirma com o auxílio de painéis ampliados (o PowerPoint da época) que a letra escrita num documento, apresentado como prova pela acusação, é mesmo de Dreyfus. Logo ficamos sabendo da fraude intencional do “técnico”.

A apresentação das instalações do Serviço Secreto do exército ao Coronel Georges Picquart, novo chefe da seção, é exemplar: primeiro aparecem os policiais civis e informantes numa promiscuidade pouco recomendável para a ética e rigor castrenses, depois Polanski destaca o fedor de esgoto que predomina no prédio e em todo o quarteirão, uma metáfora explicita. A seguir vem o setor onde dois militares trabalham violando cartas particulares, um no método “seco” e o outro no “vapor”. Essa sequência mostra, de forma didática até, como funciona as entranhas do poder e o “cheiro” que exala delas.

Uma cena rápida merece destaque pela carga simbólica que contém: quando o Coronel Picquart acompanha Dreyfus num dos corredores do quartel general para uma audiência com o comandante, vê-se ao fundo na parede um quadro com uma pintura que retrata Napoleão Bonaparte montado em seu cavalo branco numa cena épica (trata-se do quadro Napoleão Cruzando os Alpes, pintado por Jacques Louis David). Napoleão, que já chefiara o exército francês em antológicas e heroicas jornadas marciais, sem dúvida um dos maiores estrategistas militares da história, é naquela França do ano de 1894 apenas um retrato imóvel   e mudo na parede, e o glorioso exército que um dia comandou em extraordinárias conquistas não passa de um aglomerado de araques da polícia, oficiais bisbilhoteiros e corruptos e, como vimos antes, o ambiente fede a esgoto.

Outro grande momento do filme, que nos ajuda a compreender cristalinamente a psicologia dos envolvidos nessa estrutura corrompida e corruptora é quando o major Henry (trabalho soberbo do ator Grégory Gadebois) diz ao coronel Georges Picquart “que cumpre qualquer ordem dada por um superior, mesmo que esta seja equivocada”, porque, segundo ele, “isto é o exército” (aqui lembrei do conceito de “banalidade do mal” cunhado por Hannah Arendt em seu brilhante estudo sobre as atrocidades cometidas pelos nazistas sob a justificativa de que apenas “cumpriam ordens superiores”).

Noutro ensejo, pressionado para revelar o nome de uma testemunha que havia feito grave acusação a Dreyfus, requisito obrigatório num julgamento para validar a acusação, o major Henry se esquiva afirmando “há segredos na cabeça de um oficial que nem o seu quepe deve saber”, a frase é um ultraje ao amplo direito de defesa garantido pela Constituição, mas o tribunal militar, reunido em Corte Marcial com portas fechadas “por motivo de segurança nacional”, aceita a afronta do oficial numa atitude  inconfundivelmente  autoritária e corporativista. Sobre essa abjeta postura do tribunal militar, Émile Zola, no seu histórico brado “Eu Acuso”, disse: “Eu acuso o general Billot de ter nas mãos as provas verdadeiras da inocência de Dreyfus e de havê-las abafado, de se haver tornado culpado do crime de lesa-humanidade e de lesa-justiça com um objetivo político e para salvar o Estado-Maior comprometido.” Noutro trecho da brilhante denuncia pública de Zola (que mudou totalmente os rumos do processo injusto contra Dreyfus), ele acusa “...o primeiro Conselho de Guerra, de haver violado a lei ao condenar um réu baseado num documento que permaneceu secreto e eu acuso o segundo Conselho de Guerra de haver encoberto essa ilegalidade, obedecendo ordens, cometendo, por sua vez, o crime jurídico de absolver, com conhecimento de causa, um culpado “(no caso o oficial Charles Esterhazy, o verdadeiro espião que traiu o exército).

Polanski nos mostra neste filme que não é impossível (como a absolvição de Dreyfus acaba provando), mas é muito difícil romper essa estrutura solidamente alicerçada em vícios, preconceitos, dogmas, sabujice, astúcia, má vontade e acomodações profissionais repugnantes (observem a postura do soldado Barchin), um sem fim de privilégios e facilidades que barram qualquer tentativa de reverter aquele status quo.

Quando o coronel Picquart, a princípio favorável a expulsão e prisão de Dreyfus, começa a perceber as bases apodrecidas que sustentaram aquela condenação e tenta restabelecer a verdade para que a justiça seja feita partindo para um confronto direto com a ortodoxia prevalente, ele se vê repentinamente como uma persona non grata, um “estranho no ninho” naquele ambiente carcomido, pouco iluminado, fedendo a esgoto.

“O Oficial e o Espião” não é uma incursão nostálgica ao final do século 19 nem é também um relato fatual do emblemático Caso Dreyfus. O filme é de uma assombrosa atualidade, uma constatação inquietante que, passados 125 anos daquele julgamento, os métodos espúrios usados para a condenação de Defreyus, não por ser um traidor, que nunca foi, mas por ser judeu, permanecem atuais nesse século 21 com o acréscimo das novas tecnologias que potencializam esse método dando-lhe uma eficácia e uma amplitude nunca sonhadas antes.

O longa de ficção, porque baseado num romance, mas trazendo à tona um fato real, é em síntese, uma homenagem àqueles que não se conformam com as versões oficiais dos acontecimentos e lutam contra tudo e contra todos para restabelecer a verdade e fazer justiça, como é o caso do Coronel Georges Picquart, personagem central de “O Oficial e o Espião”, trabalho notável do ator Jean Dujardin.

O novo trabalho de Roman Polanski ganhou o Prêmio Especial do Júri, melhor filme, no Festival de Veneza 2019; o diretor ganhou o César francês no mesmo ano. Prêmios mais que merecidos.

P.S. Se quiser aprofundar seu estudo sobre esse episódio marcante da história no final do século 19 e início do século 20, recomendo a leitura do livro “O Caso Dreyfuss” de Jean-Denis Bredin, quiçá o mais completo relato feito até agora sobre esse controverso capitulo da história da França.

2 comentários

  1. Um filme belíssimo e um texto muito elucidativo. Peguei insights muito interessantes de planos que eu não tinha notado na primeira vez que vi o filme.

    ResponderExcluir
  2. O filme e a crítica que analisa o filme se merecem. Não consegui desprender o olho da tela. Primeiro a critica, depois necessariamente e urgentemente, o filme. E que filme? E que análise crítica? Mas por mais instigante, original e preciosa que tenha sido a leitura da excelente critica, escovando a história a contrapelo como nos ensina Walter Benjamin, o filme surpreende! Análise crítica e filme expressam toda força do cinema como arte que pode romper padrões de massificação e podem conter a evasão de realidade própria do entretenimento, construindo um lugar de inclusão, de pensamento crítico, de diversidade e diálogo intercultural. O filme resgata do passado e faz vibrar no presente, a voz emocionada e ressoante do romancista e ativista político, Émile Zola. “Eu acuso!”. No passado, no presente e no horizonte com Roman Polanski, uma vanguarda intelectual consciente de si mesma e de sua função na construção de um mundo melhor para todos, onde o ódio não rompa o pacto civilizatório.
    Para Freud a verdade só pode ser dita numa estrutura de ficção, na medida em que aborda (faz borda) o impossível de ser dito. A obra de Roman Polanski, como disse Romero Azevedo, se é que não me equivoco, atualiza questões não resolvidas no Brasil e no mundo atual, que testemunham a centralidade do ódio como o afeto que produz a degeneração “dos princípios éticos e morais”, e a injustiça. _ “Recentemente, têm colocado ferros em mim toda noite. Não tenho ideia do porquê. Não é uma simples precaução. É ódio puro.” Através da obra de arte e para aqueles que nos colocam ferros toda noite, podemos dizer em coro e com a coragem dos que rompem o silêncio que mumificam os inocentes: “Eu acuso!”, “J’accuse!” .

    ResponderExcluir

Posts Relacionados