OS 40 DA PRATA CONTRA TARAS BULBA DA BELA VISTA

janeiro 05, 2020


De repente o twist de Chubby Checker se despedia das rádios, mediado por Rita Pavone e a eletrizante “Dateme um martelo”, para dar lugar ao yeah-yeah-yeah dos Beatles, traduzido aqui como iê-iê-iê. 

Os revolucionários anos 60 estavam só começando e já anunciavam mudanças radicais, ao menos na música popular.

No cinema James Bond ditava moda, mas os épicos produzidos na Cinecittá em Roma ainda ocupavam grande parte da programação dos fins de semana nas telas do Babilônia e, especialmente, do Capitólio.

Hércules, Maciste, Ursus, Teseu, Enéas, Aquiles e outros semideuses e heróis da mitologia greco-romana influenciavam com seus feitos retratados na tela grande a meninada daquele momento.

Entre tantos filmes “sword and sandals” (espada e sandálias na definição pejorativa da crítica), um se destacou e chamou a atenção logo no trailer que alardeava “junte um filme às Maravilhas do Mundo! Taras Bulba!”.

O filme baseado no romance histórico de Nicola Gogol conta a história e aventuras épicas do cossaco ucraniano Taras Bulba e seus dois filhos.

Yul Brynner é Taras Bulba, a direção é de J. Lee Thompson que já tinha empolgado os espectadores do Capitólio com “Os Canhões de Navarone”.

Estamos numa tarde ensolarada de sábado no bairro da Prata. Das janelas abertas das casas pode-se ouvir Adilson Ramos cantando “Leda”, um misto de calypso e cha-cha-cha, sucesso nas ondas do rádio.

Os soldados do exército auto denominado “Os 40 da Prata” estão reunidos para traçar as estratégias daquele que seria o seu maior desafio: enfrentar o temido Taras Bulba da Bela Vista e seus cossacos sedentos de sangue.

O Taras Bulba local tinha a cabeça raspada (daí o apelido que ele mesmo se deu, baseado na “diz que” semelhança com Yul Brynner) e as pontas dos dedos das mãos dilaceradas por “espadadas” sofridas em combates pretéritos.

As espadas eram feitas com cabos de vassoura partidos ao meio, um cabo rendia duas espadas.

Entre os “40”, alguns soldados mais sofisticados usavam capacetes feitos com cuias de queijo do reino e empunhavam reluzentes calotas de fusca adaptadas para servirem de escudo, tinha até um que conseguiu emprestado com amigos que faziam teatro, um espalhafatoso gálea de centurião romano, usado em encenações da Paixão de Cristo. O adereço, reforçado com tampinhas de refrigerante à guisa de medalhas, dava àquela cena um colorido diferente e embaralhava épocas e povos num sincretismo mais carnavalesco que histórico.

Que lembramos, faziam parte dos “40” Antônio Fernando e Hermininho Soares, Nêga Boa, Pelado, Mica, Valbim, Petróleo, Mirinho, Badu, Lula Porco, Catonho, Bunda Cheia, Galo Cego, Doutorzinho, Xinxela, Luiz Helder, Rômulo Azevêdo e eu.

Na verdade esses “40” eram uma miragem que nós mesmos criamos e acreditamos para dar peso e volume a tropa que lembrava mais o exército de Brancaleone que as legiões romanas de Cinecittá. No máximo éramos uns 15 combatentes, todos treinados nas sessões de sábado à tarde no Capitólio ou no domingo no mesmo horário no São José.

Para nós as lutas eram cinematográficas, para Taras Bulba da Bela Vista era “na vera”, e as cabeças dos dedos das mãos dele eram a prova incontestável disso. Esse era o fator psicológico que nos agoniava, beirando o pânico.

No meio daquele alvoroço, alguém portava um radinho de pilha marca “Spica”, um aparelho muito cobiçado, e aumentou o volume quando os acordes iniciais de “Speedy Gonzalez” na voz de Pat Boone foram introduzidos. Todos nós amávamos aquele som, mas o momento era inapropriado, estava mais para a “Marcha Fúnebre” de Chopin, e o soldado percebendo a bola fora desligou o radinho.

Qual a tática? Qual a estratégia para enfrentar um guerreiro que não conhecia regras no campo de batalha? Para Taras Bulba e seus cossacos da Bela Vista o objetivo no combate era um só: tirar sangue do inimigo, sim, inimigo, para Taras Bulba não existia essa conversa de adversários, todos eram inimigos.

Segundo os ensinamentos do Taras Bulba bela-vistense, mais na prática do que por teoria, a geografia do corpo humano, dividida em cabeça, tronco e membros, era o alvo amplo e ideal para “se tirar sangue” no teatro de guerra.

Súbito, no meio da tensa reunião dos “40”, ecoa o trompete de Jimmy Sedlar nos primeiros acordes de “Thunderball”, música de John Barry, tema do filme “007 Contra a Chantagem Atômica”. Não era som de rádio, era uma radiola da vizinhança girando o disco de Sedlar e Orquestra, um verdadeiro “hit” naquele ano.

O tempo se esgotava, o confronto estava marcado para as 15 horas em ponto e o relógio já passava das 14 horas. Um membro dos “40”, assíduo espectador das chanchadas da Atlântida, sugeriu atrasar os ponteiros do relógio como Oscarito em “Matar ou Correr”, não precisa dizer que a ideia foi rechaçada unanimemente pelo ridículo que continha e a covardia que tentava ocultar.

O sol a pino, “desabando” sobre nós como no poema de Ásfora,., era um fator extra de inquietação. Os soldados que tinham capacetes de cuias de queijo do reino sentiam mais fortemente o sol fritando os miolos enfiados naquele primitivo forno micro-ondas orgânico.

Partimos, não muito confiantes, para aquele que seria o primeiro e último duelo dos “40 da Prata”.

As ruas não eram pavimentadas, empunhando nossas espadas, elmos-cuia e reluzentes escudos-calotas polidos na base de Kaol, começamos uma marcha que mais parecia uma caminhada trôpega e desengonçada. No alto da ladeira uma espessa nuvem de poeira assinalava o avanço dos cossacos da Bela Vista e o seu líder, o temível Taras Bulba. Pela nuvem dava para ver que Taras Bulba conduzia uma tropa de mais de 100 guerreiros brandindo suas espadas e gritando como índios atacando num filme de faroeste. A imagem e o som eram aterradores. A impressão que se tinha era a de que Taras Bulba conseguira reunir todos os meninos da Bela Vista entre 11 e 14 anos (nossa idade nesse episódio) para formar seu gigantesco exército.

Os “40 da Prata” se entreolharam mudos e petrificados diante do eminente massacre. De nada valeram as lições heroicas dos “300 de Esparta” aprendidas no escurinho do Babilônia, ali, em plena luz do dia, na concretude da vida real, o buraco era mais embaixo.

Ninguém disse nada, ninguém combinou nada, ninguém deu um sinal, o certo é que numa sincronia movida pelo instinto de sobrevivência, não esperamos que Taras Bulba ultrapassasse a linha imaginária que delimitava o meio da ladeira da rua Pedro II, ponto onde escassos 200 metros nos separavam daquela horda volumosa, barulhenta e a fim de uma briga para valer. Sem pestanejar, nos dispersamos em desabalada carreira, uns pela esquerda da rua Montevidéu, outros pela direita, e outros deram marcha a ré na mesma Pedro II. Ninguém olhou para trás para ver a reação dos cossacos, até hoje não sei o que aconteceu com eles diante daquela inusitada cena dos “40” em desesperada fuga. 

Chegamos em casa suados e ofegantes da correria, parodiando o poeta Mário Faustino: gladiadores perrengues mas intactos. Naquele instante o importante era salvar a pele, melhor dizendo o sangue. Estávamos cansados mas principalmente aliviados.

Um copo de água refrescante ajudou a desacelerar o ritmo cardíaco e saciar parte da sede avassaladora que comprimia a garganta.

Naqueles tempos de tevê em preto-e-branco e roupas coloridas, eu estava mais para as artes musicais e menos, muito menos, para as artes marciais.

Ligamos a televisão a tempo de ver mais um programa “Jovem Guarda”, gravação exibida pela TV Rádio Clube, canal 6 de Recife, nas tardes de sábado.

No vídeo, Erasmo Carlos cantava “Pode vir quente que eu estou fervendo”. A última ironia dirigida a nós pela causalidade naquela distante tarde, já quase noite, dos anos 1960.

1 comentários

  1. Eu, meu irmão e primos quase fizemos uma "refilmagem" desse episódio, lá em meados dos anos 80, duas turmas da rua Rio Branco se enfrentariam, e a divisa era a Nilo Peçanha... Até que fomos informados que alguns da outra "tropa" estavam portando facas... Fosse verdade ou não, como recuar seria covardia, demos meia volta e avançamos... Pra casa.

    ResponderExcluir

Posts Relacionados