Beatles 64: O Sonho Ainda Não Se Concretizou

dezembro 01, 2024


O mais novo documentário sobre o fenômeno beatle, Beatles 64, já está disponível no streaming (Disney Plus). O filme, uma produção de Martin Scorsese (que inclusive aparece numa cena conversando com Ringo), é dirigido por David Tedeschi.

Numa primeira perspectiva o documentário retoma a primeira viagem que o grupo fez aos Estados Unidos em fevereiro de 1964, foram 14 dias que acabaram projetando a beatlemania, um prodígio até então restrito à Europa, no mundo todo.

Mas o filme é mais que isso, é uma reflexão beneficiada pelo distanciamento temporal (lá se vão 60 anos!) sobre o que significou tudo aquilo.

Uma frase do presidente John Kennedy logo no início do documentário referindo-se ao racismo explícito ainda vigente nos EUA esta nação não será totalmente livre, até que todos os seus cidadãos sejam livres, dá uma pista sobre o que vamos ver a seguir.

Não custa lembrar que os Beatles chegam ao aeroporto de Nova York, logo rebatizado como aeroporto John Fitzgerald Kennedy, três meses depois do brutal assassinato de Kennedy em Dallas-Texas. Os EUA estavam ainda de luto, atônitos com aquela violência deflagrada em plena luz do dia, uma violência que como sabemos gerou mais violência nos anos seguintes com os assassinatos de Malcolm X, Martin Luther King, Robert Kennedy e Fred Hampton.

Naquele contexto histórico de brutalidade e dor, os Beatles surgem, ao meu ver, como uma possibilidade diferente de seguir adiante numa perspectiva de paz, ao som da mais penetrante das artes, a música; liberando o corpo pela dança, libertando os cabelos das tesouras e das máquinas de tosar no estilo militar. O melhor de tudo é que nada foi planejado ou organizado, simplesmente explodiu em uma onda nessa luta do rochedo com o mar como canta o samba.

A certa altura John Lennon diz que os Beatles foram fruto do fim da obrigatoriedade do serviço militar na Inglaterra, e isso foi como que  uma "permissão para viver" dada a geração dele, e eles retribuiram com música, formando "um exército que não existia". Foi esse "exército" que invadiu a América em 1964 e botou tudo de ponta a cabeça. All do you need is love, cantariam mais tarde.

Aquele acontecimento, hoje histórico, mostrava um caminho, era um contraponto ao que se vivia naquele momento: repressão no campo dos costumes, conflitos raciais, guerras por todas partes, golpes e quarteladas idem.

Numa entrevista do filme, Betty Friedan (1921-2006), conhecida também como a feminista que abalou os alicerces machistas da América, fala de uma forma lúcida, inteligente, sobre os cabelos longos dos componentes da banda, relacionando-os a uma nova forma de expressão da não violência, principalmente a violência praticada contra as mulheres.

(Sobre cabelos longos, abro esses parênteses para citar um momento engraçado: na recepção ao grupo no aeroporto de NY uma faixa levada pelos fãs diz Os Beatles vão matar os barbeiros de fome. 60 anos depois o que mais se vê em nossa cidade são barbearias. O tempora, o mores! Rsrsrsrsrs...)

Hoje, ouvindo aquelas canções ingênuas (para alguns mal-amados alienadas), podemos extrair novos significados, significados que já estavam implícitos naquelas palavras, mas que a barulheira provocada pelos fãs impedia de ouvir.

I Wanna Hold Your Hand na Palestina, nos escombros de uma escola ou hospital destruídos pelas bombas sionistas. E não há dinheiro no mundo que me faça mudar de ideia: Can't Buy Me Love, só para citar dois exemplos. As imagens de um funeral histórico ao som de All My Loving explicam melhor o que estou querendo dizer.

Aquela música, aqueles gestos, apontam para a frente, não para trás. Para mim não há nostalgia no filme de David Tedeschi produzido por Scorcese, aquele clima saudoso do tipo “oh como era bom”, pelo menos para mim não cola. O que sinto naquelas imagens, falas e músicas é uma possibilidade, possibilidade que me remete a Romeu e Julieta sem veneno nem punhal, Tristão e Isolda sem feridas nem tristeza, Ilsa e Rick felizes para sempre em Paris, Yoko e John envelhecendo juntinhos na sua dupla fantasia, essa possibilidade ainda não se concretizou. Talvez no século 22.

Confiram.

3 comentários

  1. Assisti apenas dois filmes produção de Martin Scorcese, Taxi Driver, e O Irlandês, “Um Filme Que Já Nasceu Clássico”, conforme indicação desse maravilhoso Blog (2019). “Porque são estas as funções do cinema: dar visibilidade ao invisível; tornar visível o dizível; e inesquecível o que se poderia esquecer” (AZEVEDO, R. 2023). Beatles, 1964, contexto histórico de brutalidade e dor, mas “cabelo ao vento gente jovem reunida” e a paz. I Wanna Hold Your Hand. Não vou perder esse filme, Beatles 64: O Sonho é REAL.

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  2. Maravilha, prof. Romero. Como sempre digo e disse, e por isso compartilho suas resenhas, pois são como faróis que azeitam de luz os lastros da maior e expansiva curiosidade. Enfim, mais uma dica ótima pra ver, sentir. Não vi ainda o documentário, mas com esse artigo, e sabendo de sua paixão pelos Beatles, correrei já pra procurar e vê-lo. Obrigado, prof. Romero. Abraços

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