O Cinema brasileiro e a história anunciam aos 4 cantos do planeta: ainda estamos aqui e democracia é melhor!

novembro 09, 2024


A sala lotada, predominância do público jovem, na última sessão da noite de quinta-feira, 7 de novembro, aplaudiu com entusiasmo quando os créditos começaram a rolar na tela. Não era para menos.

Ainda Estou Aqui, novo filme de Walter Salles estreado nesse dia, é um daqueles raros filmes que lhe invadem dos pés à cabeça numa velocidade estonteante, desde o primeiro minuto de exibição.

É tanta coisa boa reunida numa obra de arte que nem sei nem por onde começar.

A trilha sonora, por exemplo, é uma atração à parte. Big Boy apresentando um programa na rádio Mundial (oito, meia, zero, o som jovem do Rio nos 70), Gal Costa, Jane Birkin e Serge Gainsbourg, Roberto Carlos, Juca Chaves, Caetano Veloso, Nelson Sargento, Beth Carvalho, Johann Jóhannsson, Tom Zé, e Erasmo Carlos na belíssima e engajada É preciso dar um jeito, meu amigo (do disco de 1971), sintetizando tudo nos créditos finais: mas não vou ficar calado/no conforto acomodado/como muitos por aí.

A fotografia de Adrian Teijido é outro impacto maravilhoso, a sacada de inserir as imagens gravadas em Super-8, uma textura dos anos 1970, em contraste com as imagens da TV ainda em preto-e-branco e as imagens sombrias da casa depois que os militares à paisana fecham todas as cortinas, escurecendo o filme daí para a frente, é mais que funcional, é o emocional traduzido em imagens, um requinte linguístico que só o cinema pode proporcionar.

As imagens em Super-8 milímetros também têm um significado extra, é o reconhecimento da importância dos registros caseiros, domésticos, como suporte de recuperação da memória perdida. A cena em que eles assistem um desses filminhos feito em Londres reforça essa ideia, o então menino Marcelo pede a mãe no final da projeção: passa de novo. E é justamente o que estamos vendo, uma reprise daquele material antes restrito ao ambiente da família Paiva, sem aparente valor histórico, e agora ressignificado como elemento vital da narrativa juntamente com as dezenas de fotos familiares que são mostradas ao longo do filme.

O contraste é dominante: as cores alegres, solares, do Super-8 com seus movimentos bruscos, enquadramentos ao sabor dos solavancos do carro da família e das escorregadas na areia da praia, é a liberdade, o direito de ser feliz em toda plenitude. As imagens “do filme” são estáticas, pesadas, quase nenhum movimento e uma lúgubre escuridão.

O elenco é sublime e explica para nós, com sua atuação memorável, os dez minutos de aplausos de pé que recebeu no Festival de Veneza no último mês de setembro.

Fernanda Torres como Eunice, a mulher de Rubens Paiva, personagem central do drama, nos enche de alegria por sabermos que temos no Brasil uma atriz tão completa, esse talento sem medida, essa força humana em favor da arte, essa mulher extraordinária, como Eunice, em favor da vida.

Selton Melo, como Rubens Paiva, é outro gigante da atuação. Aparece pouco, como pede o roteiro, mas consegue comunicar a presença de Paiva até nas fotografias que são mostradas.

O elenco pré-adolescente (Guilherme Silveira, Cora Ramalho, Bárbara Luz, Luiza Kosovski e Valentina Herszage) representando os filhos de Rubens e Eunice, é do mesmo nível dos adultos, o que reforça também a direção competente de Walter Salles.

A direção de arte proporciona uma detalhada reconstituição de época poucas vezes vista no cinema brasileiro. Os elementos que compõem as cenas, carros, pôsteres, discos, ambientes, são colocados sutilmente, sem chamar a atenção pelo excesso ou pela falta, fortalecendo assim o tom naturalista que conduz a narrativa, o caráter histórico do filme também é sublinhado com a foto na parede da repartição pública do general Garrastazu Médici, cujo governo foi o mais sangrento de toda a ditadura, e foi na gestão dele que Rubens Paiva foi sequestrado e assassinado.

O roteiro, premiado em Veneza, é de alto nível. Não quero aqui fazer comparações com o livro de Marcelo Rubens Paiva no qual o filme é baseado, mesmo porque nem li o livro. Aqui falo do que vi na tela do cinema, literatura é outro campo.

Os diálogos são precisos, dão o recado sem rebuscamentos, linguagem simples e direta, mas de uma profundidade tocante, como por exemplo quando o soldado que conduz Eunice na prisão diz: Quero que a senhora saiba que não concordo com isso. Um toque sutil que nos revela a engrenagem de uma ditadura, não são os soldados subordinados que cumprem as ordens sob pena de duros castigos os responsáveis pela violência do Estado, mas seus superiores que ordenam tudo.

Filmes como O Caso Dos Irmãos Naves, Batismo de Sangue, Pra Frente Brasil, Cabra-Cega, Desaparecido: Um Grande Mistério, A Confissão, A História Oficial, A Batalha do Chile, Estado de Sitio, A Batalha de Argel, Machuca, Zuzu AngelUm Dia Muito Especial, Ainda Estou Aqui, e muitos outros precisam ser feitos para que os fatos que eles abordam não sejam esquecidos e sirvam ao menos de alerta e reflexão para que não se repitam nunca mais. Cinema é memória, a própria natureza da imagem cinematográfica, analógica ou digital, remete a isso. No Brasil, país de memória curta, curtíssima, esse tipo de filme é mais que bem-vindo, é necessário.

Uma cena rápida, mas de grande intensidade dramática-reflexiva, mostra a empregada da casa dos Paiva engomando a roupa da família e ouvindo no radio Roberto Carlos cantando a emblemática as curvas da estrada de Santos. Naquela atmosfera aterrorizante da ditadura, de interrogatórios na base da tortura, os versos que abrem a canção Se você pretende saber quem eu sou / Eu posso lhe dizer, entre no meu carro / Na estrada de Santos você vai me conhecer, nos chegam como um poderoso contraponto, o grande enigma existencial da humanidade - quem eu sou? - explicitado poeticamente, oferecendo uma resposta sem apelar covardemente para gritos, sangue e dor, apenas mergulhando de cabeça ao sabor da velocidade que tudo aproxima e tudo afasta in the long and wide road, como também nos sugeriam os Beatles na mesma época. O filme também dá um novo significado aos versos da canção que dizem preciso de ajuda/por favor me acuda...

O que mais me tocou nesse filme, um dos melhores que vi esse ano, além de tudo que já falei acima, é o protagonismo da mulher. Num tempo sombrio como foi aquele (e ainda tem desalmados, sem alma, sonhando com a volta deles... toc, toc, toc. Isola), de repente uma mulher, mãe de família, culta, 5 filhos menores de idade, vivendo no “aconchego do lar” com o marido comandando tudo, é atirada no centro da vida, não mais na “periferia” como se encontrava até ali. Eunice vê sua casa, um ambiente alegre, musical, ensolarado, solidário, ser escurecida e silenciada pela mão de ferro dos agentes da repressão. Ela também experimenta na pele, junto com a filha pré-adolescente (sim, a ditadura não distingue adultos de crianças, nem homens de mulheres, todos eram passiveis de afogamentos, choques elétricos, pau-de-arara) os horrores das masmorras instaladas num quartel do exército brasileiro no Rio de Janeiro no ano de 1971.

A partir daí, quando volta para casa depois de dez dias sofrendo violenta tortura psicológica e física, surge uma outra Eunice: combativa, guerreira, destemida, corajosa, não descansando um minuto sequer na busca incessante pela verdade sobre o seu marido assassinado (o corpo até hoje não foi encontrado).

Eunice entra nessa luta de cabeça erguida, se chora é escondida para os filhos não verem, quando um fotografo de uma revista pede uma pose contrita para ela e os filhos, ela se nega a obedecer e diz para os filhos: todos sorrindo. Ela não quer vencer a guerra, como acabou vencendo, pelas lamentações, mas pela garra, pela altivez, pela dignidade que manteve até o fim da sua vida.

Ao trazer essa surpreendente personagem para o centro do drama (como seu filho Marcelo já o fizera no livro), tirando-a do quase anonimato a que estava submetida, o diretor Walter Salles, com o apoio magnífico de Fernanda Torres, nos propõe uma nova forma de olhar para os fatos da história agora sob o prisma de uma mulher, personagem da maior importância, que até então não tinha a visibilidade que merece por conquista própria, não por outorga de quem quer que seja.

Essa construção dramática tendo como eixo o feminino me lembrou uma cena de Um Dia Muito Especial de Ettore Scola que exibimos na terça-feira, 12, no Cineclube Memorial: Mastroianni lê uma frase do ditador Benito Mussolini onde ele diz que as mulheres não têm cérebro para comandar. Ato continuo pergunta a Sophia Loren, dona de casa oprimida, se ela concorda. Ela diz que sim. Ele insiste: por quê? Ela responde: os livros de história estão cheios de homens. Mastroianni, numa sacada irônica genial diz: por isso mesmo que não cabe mais ninguém nesses livros.

Li alguns comentários afirmando que o filme é destituído de visão política e de certa forma ameniza os fatos ocorridos durante a ditadura. Que sandice!

O poeta Bráulio Tavares disse certa vez sobre esse período da ditadura militar: Todos fomos exilados. Uns, noutros países. Outros, noutros destinos. É o caso cristalino da família de Rubens e Eunice Paiva, querer dimensionar a importância desse ou daquele personagem pela régua torta da ideologia é burrice existencial. Um choque elétrico de 220 ou 110 volts queima a pele com a mesma intensidade, seja o torturado de esquerda ou não.

Peço licença para contar um episódio que tem muito a ver com tudo isso: no ano de 1976 a Jamaica vivia uma polaridade política muito semelhante a que vivemos recentemente no Brasil, Bob Marley tentava a todo custo encerrar esse debate de pastoril entre a esquerda (o cordão encarnado) e a direita (o cordão azul). Na véspera de um grande show que ele ia promover no meio da rua para selar um armistício nessa guerra insana, pistoleiros fortemente armados invadiram a casa dele atirando, o seu agente ficou gravemente ferido, ele foi atingido de raspão no tórax e no braço, mas a intenção era assassiná-lo.

Dia seguinte a imprensa pergunta a Bob Marley: quem você acha que tentou lhe matar, a esquerda ou a direita? Marley, com sua sabedoria muito acima das ideologias, respondeu: quem tentou me matar foi o diabo. Compreendem?

O novo filme de Walter Salles, Ainda Estou Aqui, está em cartaz na cidade e vale cada centavo investido no ingresso.

Acabei de saber com imensa alegria que o filme bateu o milhão de reais nas bilheterias neste lançamento (só ontem!).

Se não bastasse tudo isso que foi dito e visto, ainda temos uma participação mais que especial de Fernanda Montenegro. Em cena, sem dizer uma palavra, apenas comunicando com o corpo (aquele corpo que contém todos os personagens que ela encenou, como já foi dito), especialmente com o rosto, olhos, boca, testa, maçãs da face, orelhas.

Fernanda não rouba a cena como se costuma dizer, ela é a própria cena.

Confiram.

5 comentários

  1. "Ainda estou aqui" vai se tornar esses filmes básicos para se falar da ditadura, e das mudanças nos formatos de produção de cinema no Brasil: o que a Globo e a Conspiração conseguem fazer nesse filme é impressionante! Dinheiro bem usado é muito bom hahahah

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  2. “Ainda Estou Aqui”. Assisti em João Pessoa, tive medo de não conseguir assistir em Campina Grande. Texto e filme se merecem, emocionantes, ternura solapante, resgate da memória, da verdade. Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, em seus últimos dias é uma metáfora de um Brasil sem memória. “É preciso dar um jeito, meu amigo”, e é esse seu jeito que admiro. Obrigada.

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    1. Sim, a sequencia final é um reforço na necessidade de não esquecer para não repetir. Os filhos estão em torno da mesa numa área externa da casa, conversam descontraídos. Eunice na sala,sozinha, vê na TV um documentário ou reportagem sobre os mortos e desaparecidos na ditadura. É como se ela fosse uma testemunha muda,por causa da doença, disso tudo.Mas esse silencio involuntário dela grita, e Erasmo Carlos fala por ela.

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  3. Matéria do próximo Enem com toda certeza.

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