Viver É Fácil Com Os Olhos Fechados: O Filme e Os Livros

outubro 17, 2024

Viver É Fácil Com Os Olhos Fechados, o título do filme do diretor espanhol David Trueba (também coautor do roteiro) vem de um verso da canção Strawberry Fields Forever, feita por John Lennon e cantada pelos Beatles: Living is easy with eyes closed.

O filme é muito bom. Não, não é só para fãs dos Beatles, o filme ultrapassa em muito esse reducionismo.

Para quem mede os filmes pelos prêmios recebidos (o que não é o meu caso) informo que Viver É Fácil Com Os Olhos Fechados ganhou 6 Goya em 2014, a mais importante premiação do cinema espanhol, incluindo melhor filme, melhor roteiro original, melhor trilha sonora, melhor ator e atriz e melhor diretor.

O filme é inspirado numa história real: um professor de inglês do ensino médio, Juan Carrión, 41 anos, utilizava em suas aulas em meados dos anos 60 as letras das canções dos Beatles. Em 1966 Carrión soube que John Lennon estava na Almería (região costeira no sul da Espanha, ensolarada, onde foram feitos grande parte dos faroestes italianos) fazendo um filme sob a direção de Richard Lester (Como Eu Ganhei A Guerra), o mesmo diretor dos dois filmes dos Beatles: A Hard Days Night e Help, e resolveu tentar um encontro com Lennon para tirar dúvidas sobre as letras transcritas de ouvido diretamente das gravações nos discos (os primeiros discos dos Beatles não traziam as letras das canções impressas nem existia o Google). Houve o encontro, Lennon corrigiu gentilmente as letras contidas nos cadernos levados por Carrión, apresentou para ele em primeira mão uma nova canção que estava compondo naquele momento e o resto é história.

Acalmo os portadores da spoilersfobia dizendo que esse é apenas um resumo resumidíssimo de um fato real acontecido há 58 anos, ou seja, a mais de meio século. Não tem como guardar esse “segredo”, compreendem? Vocês podem contra argumentar perguntando: qual é a graça de ver esse filme se já sabemos que John Lennon se encontrou com o tal Carrión? Ora, o importante num filme, nos ensina Lisbela (sim, aquela do prisioneiro) não é o QUE acontece, mas COMO acontece. Percebem? Acho até que já falei sobre isso aqui no blog, mas não custa nada repetir.

O professor Juan Carrión, o original, não o personagem do filme, escreveu um livro sobre esse episódio da vida dele com John Lennon El Año En Que Conocí A John Lennon (Madrid: Espasa, 1999), nunca consegui esse livro, o procuro desde 2015, ano em que vi o filme de Trueba pela primeira vez. Steve Turner em seu livro Beatles 1966 - O Ano Revolucionário (São Paulo: Benvirá, 2018) também conta esse episódio e acabei de ler também Vivir Es Fácil Com Los Ojos Cerrados – Cuaderno De Rodaje Y Guion (Barcelona: Malpaso, 2014), escrito pelo diretor David Trueba. Revi também o filme, uma fábula moderna que trata de valores essenciais para o convívio humano, valores que estão “fora de moda” nos incertos dias que vivemos hoje, e como nos alerta o arquiteto e filósofo Pau Pedragosa os tempos incertos despertam os monstros.

O livro, como diz o título, é um diário de filmagem onde Trueba descreve numa linguagem jornalística-literária (ele também é escritor) os 29 dias de trabalho na feitura do filme, o processo da montagem/edição, os preparativos para o lançamento (pôster, teaser, trailer...), o lançamento no Festival de San Sebastian e o lançamento nos cinemas da Espanha. Na segunda parte tem o roteiro original do longa.

O filme trata de um caso real, mas está longe de ser uma abordagem naturalista, factual, assentada na verossimilhança como é regra nos chamados biopics do mainstream.

Para começo de conversa, o professor do filme se chama Antonio e não Juan, ele viaja até Almeria com dois jovens a quem deu carona, Juan viajou só e de ônibus. Antonio, o personagem é de Albacete, Juan é de Cartagena. E por aí vai.

Nenhum filme, por mais que se esforce, vai reproduzir com exatidão um fato pretérito, é até uma bobagem quando tentam fazer isso. O que um filme pode, e deve fazer é interpretar um fato passado, um personagem que existiu mesmo, um episódio da história etc.

David Trueba fez isso, interpretou ao seu modo, sem distorcer a veracidade do acontecido, o encontro de Carrión com Lennon, então com 26 anos, em outubro de 1966 na Almeria. Para ser mais exato, o filme nem trata disso, o filme é sobre a busca de Carrión, o deslocamento, o percurso, a persistência, os encontros, o objetivo central da procura era encontrar o poeta, não o ídolo jovem rico e famoso, que escreveu aquelas letras tão significativas para ele e seus alunos (a sequência de abertura, com eles estudando a letra da canção Help na sala de aula é maravilhosa), é nisso que Trueba se concentra.

Nessa busca, o professor e seus jovens caronas cruzam com múltiplos personagens que enriquecem a trama e reforçam o significado da narrativa.

O personagem Antonio/Carrión, interpretação comovente do grande ator Javier Cámara, reúne as qualidades humanas que Trueba viu no professor da província que com uma pedagogia revolucionária para aquele momento (não esquecer que estamos em plena ditadura Franco na Espanha) levava para o interior de uma sala de aula (ambiente que como sabemos não educa, modela) as canções transgressoras dos Beatles junto com suas longas cabeleiras e o caminho que apontavam aos jovens naquele momento, um caminho diametralmente oposto ao que a que a chamada sociedade oferecia: guerra do Vietnam e ditaduras por todas partes (inclusive aqui no Brasil), só para citar dois exemplos.

David diz textualmente que Carrión tinha uma bondade transparente e que queria que o seu personagem Antonio conservasse essa atitude, essa retidão moral de Juan.

Ao dizer isso, Trueba traz seu filme para a Espanha de 2013 (já disse aqui que os filmes ambientados no passado na verdade falam do presente), um País em grande crise moral sobretudo nos campos da política e do governo com os desmandos do rei Juan Carlos que acabou abdicando do trono em 2014 depois de uma série de escândalos revelados pela imprensa envolvendo ele e também o genro Iñaki Urdangarin que acabou preso por corrupção generalizada. É do mesmo período também o desastrado governo de Mariano Rajoy (nomeado pelo rei) que acabou sofrendo uma censura do parlamento e foi afastado do cargo em 2018.

(se dermos uma olhada nas manchetes dos jornais espanhóis hoje vamos verificar que a crise no poder persiste e está longe de solução)

Viver é fácil com os olhos fechados diz a canção de Lennon que dá título ao filme. O professor Juan Carrión nos difíceis anos 60 e o diretor e roteirista David Trueba em 2013 mostraram que vivem de olhos bem abertos, como o próprio John Lennon que no ápice da beatlemania, leia-se fama e fortuna à mancheia, escreveu a música Help um libelo contra tudo aquilo que estava vivendo e não suportava mais (a partir de 1966 os Beatles decidiram não mais fazer turnês nem apresentações ao vivo, se dedicando exclusivamente a gravação de seus discos nos estúdios da Abbey Road em Londres, quatro anos depois a banda se dissolveria e John Lennon, sempre ele, resumiria esse processo que perpassou toda a década de 1960 na frase The dream is over - O sonho acabou).

Juan Carrión morreu em agosto de 2017 aos 93 anos de idade. Quando recebeu o Goya de Melhor Filme em 2014, o diretor David Trueba chamou Carrión ao palco e entregou o prêmio a ele.

O filme está disponível na Prime Video e o e-book (edição espanhola) pode ser comprado na Amazon.

Confiram.

8 comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. "O filme não é só para fãs dos Beatles" - mas a presença deles, mesmo que indireta, aumenta o encanto da história. Aliás, tem algum filme de alguma forma influenciado por eles que não seja também tocado pela magia? "Yesterday" ou "Febre de Juventude" (o meu favorito), como esse, são filmes que fazem bem a quem assiste, que nos melhora.
    Eu não conhecia "Viver É Fácil...", fui ver atraída pelo verso - ninguém cita um verso assim sem um motivo muito bom. Fiquei feliz demais em ver compartilhadas as minhas impressões; o cinema, como os Bítous, sempre aproxima.

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    1. Talvez no seculo 22 não se lembrem mais deles, mas nesse seculo 21 continuarão "strawberry fields forever". É isso. Obrigado pela visita e comentário pertinente.

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  3. Não conhecia a obra e acabei de vê-la por recomendação do venerando Romero...

    Em "Viver é Fácil com os Olhos Fechados", Trueba constrói uma obra que dialoga diretamente com a canção dos Beatles, não apenas na literalidade de seus versos, mas na essência de suas aspirações, propondo que, mesmo em tempos de opressão, o sonho e a arte são forças poderosas de transformação.

    Grande indicação do Blog...

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    1. Grande Queiroga, muito obrigado pela leitura e comentário mais que qualificado.

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  4. Nada é real, tudo bem, mas eu aluguei o filme e assisti duas vezes, sim duas. É o mínimo, porque não é um filme para assistir apenas uma vez. Segundo Romero Azevedo: “O filme é muito bom”. Então não tem erro, e eu fui de olhos fechados.
    Primeiro, uma referência ao colapso mental que afetou a mãe de Norma Jeane e também referência ao Lar de Órfãos de Los Angeles. Arrepios de medo do projeto de implantação de escolas militares no Brasil e segue todas as pautas mais atuais do planeta, claramente apresentadas. Mas tem também o poeta Antônio Machado.
    Memória: a televisão entrando na cozinha, o noticiário. Lembrei exatamente da minha casa e da hora do jantar. Impressionante como tudo mudou depois da TV na cozinha, estou perplexa!
    O filme tem muito spoilers sobre os anos que virão, sobreposições de camadas do tempo bem sutis e “[...] os jovens estão desesperados, fecharam os olhos para o futuro”, mas “[...] há canções que te salvam a vida”. É um filme para abrir os nossos olhos e ouvidos de uma forma linda, musical, poética e especialmente leve. Excelente análise crítica e indicação, como sempre. Obrigada.

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