Novo Documentário de Oliver Stone sobre JFK é Nitroglicerina Pura

julho 03, 2023


A tarde do dia 22 de novembro de 1963, uma sexta-feira, ainda está muito viva na minha memória. Ia completar 11 anos em dezembro, morávamos no bairro da Prata (Nilo Peçanha, 299) e como sempre fazíamos, meu irmão Rômulo e eu, ligamos a televisão e sintonizamos na TV Jornal do Commercio, canal 2, de Recife, para vermos mais um episódio do seriado de faroeste O Caveira. Súbito o filme é interrompido e entra um slide com algo do tipo “atenção” escrito, a voz em off do locutor anunciou que naquela hora, por volta de 5 da tarde (13 horas no horário americano), o presidente Kennedy acabara de ser assassinado em Dallas no Texas. A notícia causou um grande impacto em todos nós que naquele tempo ainda frequentávamos as missas dominicais na igreja do Rosário, como se não bastasse a comovente morte do papa João XXIII em junho, aquele papa com cara e sorriso de vovô que revolucionou os ritos da igreja de Roma no Concilio Vaticano II, agora era a vez do primeiro presidente católico dos EUA com cara de pai legal (imagem que foi construída pelo fotógrafo Cecil Stoughton) tombar no meio da rua na frente de todo mundo na Dealey Plaza na ensolarada Dallas no Texas, Texas cuja fama conhecíamos tão bem e era para nós um sinônimo de western.

A partir daí a teia do fato (tomo emprestada a expressão de Carlos Alberto Vasentini) começou a ser tecida e as versões oficiais desse crime que mudou para sempre a política interna e externa dos Estados Unidos e seus satélites (cujos efeitos perduram até hoje), começaram a circular em todos os idiomas e meios de comunicação disponíveis.

Trinta e um anos depois daquela tarde de novembro, vi numa noite no Cine São Luís em Fortaleza o filme JFK: A Pergunta Que Não Quer Calar, produzido e dirigido por Oliver Stone em 1991.

O filme é brilhante e provocou a reabertura de um caso ainda não explicado totalmente pelas autoridades oficiais. A tal Comissão Warren, estabelecida sete dias depois da morte de Kennedy pelo presidente Lyndon Johnson para investigar o assassinato, apresentou um relatório final cheio de lacunas e perguntas sem respostas. Mais que desvendar o crime, o relatório parecia querer ocultar suas causas, possíveis mandantes e modus operandi dos assassinos (sim, no plural, porque a tese que incrimina Lee Oswald, o atirador solitário, não se sustenta nem como peça de ficção).

A mídia oficial, que defendia desde o início a Comissão Warren e seu relatório inconcluso, recebeu o filme de Stone com muitas reservas, a corporação midiática (leia-se New York Times, CBS e ABC) também viu seu monopólio da informação ser ameaçado não por um concorrente, mas por um produto do mundo do entretenimento que ousava sair da linha do divertimento fútil e adentrava corajosamente (e provocantemente) no campo investigativo da história e da vida política do país. Oliver Stone, ex combatente do Vietnam, condecorado com uma Estrela de Bronze pela bravura em combate, não era um iniciante, muito pelo contrário já havia ganhado três prêmios Oscar (dois de melhor diretor e um de melhor filme) quando lançou JFK, isso incomodava ainda mais a press corporation.

O longa de 189 minutos de duração, aparte a investigação rigorosa feita por Oliver Stone tendo como base os livros Crossfire: The Plot That Killed Kennedy de Jim Marrs e principalmente On The Trail of the Assassins do procurador público (1962-1973) no estado de Louisiana, Jim Garrison, é um primoroso estudo da edição como elemento central na construção de uma narrativa cinematográfica (ainda voltarei a esse tema num post exclusivo sobre JFK: A Pergunta Que Não Quer Calar).

No próximo mês de novembro o assassinato de John Kennedy completa 60 anos longe de ter sido dilucidado. O diretor Oliver Stone volta ao tema num documentário iluminador e merecedor de toda atenção por aqueles que amam verdadeiramente a verdade dos fatos. 

JFK Revisitado: Através do Espelho (JFK Revisited: Through the Looking Glass) é o título do documentário feito para a televisão e lançado em 2021. Em 118 minutos Oliver Stone demole, um por um, os argumentos do relatório da Comissão Warren e prova através de depoimentos de testemunhas idôneas que a versão oficial sobre o assassinato de Kennedy é uma grande farsa permeada por deduções absurdas e provas técnicas que estão mais para o mundo da fantasia que para a vida real. Desde a teoria da “bala mágica” que apareceu misteriosamente ao lado do corpo inerte de Kennedy na maca onde foi submetido a autopsia no hospital Parkland em Dallas até a exclusão inexplicável do depoimento de testemunhas importantes, sem falar nos depoimentos de médico e fotografo legistas renomados que foram forçados a desdizer o que tinham dito para não contrariar o texto final do relatório oficial. Essa nova investigação cinematográfica foi possível graças a liberação recente de documentos do próprio governo americano que estavam classificados como “secretos” e que agora, passados mais de meio século, podem ser consultados publicamente. 

Oliver Stone mostra de maneira clara e objetiva que a morte de JFK foi uma operação do segmento político conhecido como extrema direita que controlava indiretamente a central de inteligência, CIA, e a polícia federal, FBI. Não que John Kennedy fosse de esquerda, longe disso, ele estava mais para o centro, porém tinha uma vocação democrática, havia lutado na segunda guerra mundial contra o nazi-fascismo e desenvolvia uma política pacifista centrada em valores éticos e morais que ameaçava os planos belicistas e de expansão imperialista dos Estados Unidos na América Latina, Sudoeste Asiático e África. Sobre isso o diretor Oliver Stone disse: “Kennedy avançou nas possíveis relações com Cuba, negociou com a URSS o tratado de não proliferação nuclear, começou a pensar em tirar os EUA da guerra do Vietnã. Era anticolonialista. O próprio Robert McNamara, seu secretário de Defesa, confirmou isso em suas memórias. Insisto, Kennedy foi o último presidente que realmente tentou mudar as coisas, e isso se voltou contra si”. 

Também o apoio de JFK às lutas pelos direitos civis para a população afro-americana incomodou muito os supremacistas brancos, notadamente no sul do país, e o resultado desse conflito de interesses foi o seu brutal assassinato aos 46 anos de idade. De fato, depois da morte de Kennedy a geopolítica americana de inclinação intervencionista/colonialista ganhou força e passou a tramar, fomentar e incentivar golpes de estado e assassinatos de líderes em todas as partes do planeta, a começar pelo Brasil em 1964 (ver O Dia Que Durou 21 Anos, de Camilo Tavares, 2012, disponível no Youtube). Internamente teve as mortes cruéis de Malcolm X (ver Malcolm X de Spike Lee, filme lançado em 92); Martin Luther King Jr (ver Selma, filme de 2014 dirigido por Ava DuVernay); Robert Kennedy, irmão de JFK, executado a tiros em plena campanha para presidente em 1968 (ver Bobby de Emilio Estevez-2006) e Fred Hampton, líder dos Panteras Negras assassinado pelo FBI e a polícia de Chicago em 1969 (ver Judas e o Messias Negro, dirigido por Shaka King em 2020). Externamente, pós morte de Kennedy, os EUA ampliaram sua política de intervenções militares no Sudoeste Asiático não só no recrudescimento da guerra do Vietnam (ver Corações e Mentes, documentário dirigido por Peter Davis, premiado com o Oscar em 1975) mas também no monstruoso banho de sangue promovido na Indonésia (ler O Método Jacarta de Vincent Bevins tradução de Gabriel Carin Deslandes; Autonomia Literária (2022); ver O Ato de Matar (2012) e O Peso do Silencio (2014) ambos documentários de Joshua Oppenheimer; e no Congo na África (ver JFK Revisited: Through the Looking Glass, 2021), entre outros eventos dessa natureza que são mostrados no documentário de Stone.

Sessenta anos depois a pergunta não cala: quem na verdade, e sobretudo por quê, tramou e executou o assassinato de John Fitzgerald Kennedy? JFK Revisitado: Através do Espelho, sem dúvida um dos melhores filmes que vi esse ano, é uma peça fundamental para o deslindamento desse episódio histórico que diz respeito a todos nós.

Aquela distante tarde de novembro de 1963 permanece viva não porque eu tenha uma boa memória, mas porque aquele chocante fato da história no século 20 também permanece vivo e inconcluso, é uma ferida aberta que não cicatrizou nesses 60 anos, é um passado que não passou, uma história reticenciada que clama por um ponto final.

2 comentários

  1. O texto demonstra o quanto o filme , enquanto constituinte de uma prática pedagógica, pode viabilizar uma reflexão crítica através de alternativas analíticas postas na estrutura narrativa fílmica, contribuindo para o aprimorando do senso crítico que o sujeito social tem de si mesmo e do meio político-sócio-cultural em que vive. Mas para que isso aconteça é imprescindível, mediante o Tsunami de títulos que pululam na telas, ótimas indicações e análises críticas. É o que encontramos por aqui. Educação política e cidadania é a única saída. Aguardando a possibilidade de assistir. Obrigada por todas as indicações e pela excelente análise.

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  2. A participação do documentário na opinião pública é um debate que me fascina. O discurso retórico, como menciona Nichols, transformado em linguagem audiovisual, muda opiniões, decisões, e têm mudado o futuro das coisas, para o bem ou para o mal. Tem uma lista preciosa de docs nessa postagem que preciso completar!

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