Manikarnika: Épico Extraordinário
maio 01, 2023Não é de hoje que o cinema indiano superou em qualidade técnica e artística as superproduções mainstream produzidas em Hollywood.
Enquanto as majors instaladas em Los Angeles produzem sequencias infinitas, que eles chamam de franquias, de historietas de heróis quadrinizados em tinta e papel, o cinema indiano falado no idioma hindi cujo maior volume de produção é feito na cidade de Mumbai (na época da colonização inglesa essa cidade, a maior da Índia, era chamada de Bombay), amadureceu e revisita a rica história e cultura do país em filmes que surpreendem pela exuberância cenográfica, sequencias de lutas e batalhas de tirar o folego até do mais exigente espectador de filmes de ação, efeitos digitais de um realismo impressionante, diálogos e personagens muitas vezes baseados no milenar panteão sagrado dos hindus e números de dança e música, um elemento obrigatório em qualquer filme indiano, coreografados e captados pelas câmeras com raro esmero, valorizados por uma edição que preserva significado e beleza não vistos em nenhuma outra cinematografia do planeta, forma e conteúdo em equilíbrio perfeito (também fazem com competência dramas e thrillers contemporâneos).
Esse instigante cinema já produziu títulos notáveis, entre eles Jhodaa Akbar (2008); Vikram Vedha (2017) Love Sonia (2018); Kesari (2019); Padmavaat (2019), além da fabulosa série para a televisão com 36 temporadas Devon Ke Dev... Mahadev (2011/2014).
O melodrama no cinema indiano contemporâneo se moderniza e se amplia a cada nova produção, o gênero é incorporado à linguagem numa feliz justaposição que enriquece a narrativa proporcionando ao espectador mais que um espetáculo, é um toque de ópera moderna cujos números musicais dançados não quebram o realismo da ação como na maioria dos musicais americanos por exemplo, mas fazem parte da própria ação.
Épico e didático pode ser uma definição para estes filmes que superlotam as salas de exibição na Índia, (hoje segundo dados atualizados da ONU é o país com o maior número de habitantes do planeta, superando, portanto, a China, e é uma população que adora cinema). Embora tenha um mercado interno que viabiliza a produção local, os filmes indianos também conquistam milhares de espectadores nos outros países onde conseguem ser exibidos. Digo “conseguem” porque o mercado mundial de filmes é controlado com mão de ferro pelas distribuidoras americanas impedindo a circulação de outras cinematografias produzidas fora de seus domínios. Para se compreender melhor esse quadro vejamos esses números da economia da indústria: segundo dados da Academia Internacional de Cinema, a Índia produziu em 2017 cerca de dois mil filmes! No mesmo ano Hollywood produziu uma média de 800 títulos!
Para canonizar no ocidente essa expressiva marca de produções foi criado o termo Bollywood, uma corruptela sob a ótica do colonizador mesclando o nome inglês Bombay com a norte americana Hollywood (aqui também não escapamos da influência colonialista pois temos a Roliúde Nordestina em Cabaceiras e o Cine Holliúdy no cinema e na TV).
Manikarnika, A Rainha de Jhansi é um épico indiano produzido em 2019 (disponível em streaming na Prime Video). Já vi duas vezes e pretendo ver outras vezes mais, se tivesse que o definir em uma palavra, não hesitaria: extraordinário.
São 148 minutos que passam sem você perceber tal é o nível de envolvimento provocado pela narrativa. O filme, em resumo do IMDB (Internet Movie Data Base), conta a história de Rani Lakshmibai, uma das principais figuras da luta Indiana de 1857, e sua resistência ao domínio britânico. Mas é muito mais que isso.
Manikarnika apresenta ao nosso mundo ocidental uma personagem feminina real, que existiu em carne e osso, uma guerreira notável que aos 22 anos de idade enfrentou com bravura o violento e cruel exército, muito superior em homens e armas, da Companhia Britânica das Índias Orientais, nome pomposo que os ingleses deram à sua turba de invasores e saqueadores do território indiano.
É muito comum se referir a Gandhi como o único protagonista na história da libertação da Índia, sem dúvida que ele desempenhou um papel importantíssimo nesse processo histórico, mas a presença dos imperialistas ingleses no território indiano se estendeu por mais de 300 anos e nesse longo espaço de tempo muitas revoltas e lutas aconteceram, todas com o propósito nacionalista de expulsar os invasores. A singularidade de Rani Lakshmibai é que ela foi a primeira mulher a se engajar diretamente nessa luta, luta armada que deflagrou em 1857 a reação dos indianos ao domínio colonialista britânico.
Talvez alguns argumentem que a admiração pela personagem seria porque ela se aproxima do estereótipo masculino especialmente nas cenas de lutas, empunhando suas espadas. Mas, o próprio filme nega essa hipótese. Na verdade, a riqueza dessa personagem histórica é justamente sua feminilidade, sua capacidade de equilibrar força e razão, sua destreza não só com as armas de guerra, mas principalmente com a arma da palavra, do raciocínio, do discernimento, da intuição que a leva a compreender rapidamente o seu entorno e dar as respostas precisas para os conflitos gerados pela desproporcional convivência entre oprimidos e opressores. No meu entender esses são atributos femininos que algumas mulheres, por esforço próprio, desenvolvem mais que outras.
Logo na sequência de abertura é exposta a personalidade e o caráter dessa guerreira que tem uma visão e uma relação holística com a natureza e os seres vivos diametralmente oposta à visão materialista dos imperialistas britânicos que só conseguem enxergar na sua rudeza e ambição a exploração das riquezas locais, visando o lucro custe o que custar. Já nesse primeiro momento, sem nenhum dogma ideológico, o filme é didático ao mostrar de forma simples e profunda a lógica que move os oprimidos contra o desatino destrutivo do opressor.
O povo indiano em sua época acreditava que aquela guerreira era uma reencarnação da deusa Lakshmi, esposa do deus Vishnu, que no panteão hindu representa a prosperidade, beleza, fartura, generosidade e a fortuna.
Rani Lakshmibai me lembrou de imediato outras mulheres que não passaram pelo apagamento da história (como a maioria delas) e tiveram suas vidas e ações registradas para a posteridade, mulheres como as guerreiras de Tejucupapo, no vizinho Pernambuco, que em 1646, mais de dois séculos antes dos acontecimentos do filme, botaram para correr 600 soldados invasores holandeses “armadas” com pedaços de paus, panelas, água fervente, pimenta e tudo que tinham ao alcance das mãos.
Joana d'Arc, mulher que deve ser lembrada para sempre, com apenas 17 anos comandou um exército de homens derrotados, deprimidos, pessimistas e os levou a vencer uma guerra que já durava 100 anos.
Maria Quitéria, primeira mulher militar do Brasil, lutou na guerra pela independência na Bahia (1822), seu exemplo atraiu outras mulheres que formaram uma tropa feminina comandada por ela. O historiador Carlos Alberto Vesentini (in memoriam) escreveu um texto que serviu de base para um roteiro de um filme histórico sobre Quitéria proposto a Embrafilme, infelizmente esse filme nunca foi feito. Abro um parêntese para dizer que essa personagem da história do Brasil povoou a minha infância, é que minha mãe, a professora Wanda Elizabeth, no ano de 1958, participou do programa de perguntas e respostas, ao vivo, no palco-auditório da lendária Rádio Borborema O Céu é o Limite, respondendo sobre a vida e os feitos de Maria Quitéria, uma baiana como ela.
Em 1979, Walter Lima Jr lançou o filme Joana Angélica, história da freira baiana mártir da luta pela independência que defendeu com o próprio corpo a porta do convento da Lapa em Salvador, sendo massacrada ali mesmo pelos soldados invasores portugueses.
Estas foram algumas mulheres reais que lembrei vendo Manikarnika, o belo épico indiano dirigido a 4 mãos por Radha Krishna Jagarlamudi e Kangana Ranaut, Kangana é uma talentosa e jovem (36) atriz-diretora que está finalizando seu quarto filme Emergency, previsto para ser lançado ainda neste ano de 2023. Além de codirigir Manikarnika, ela também interpreta a guerreira rainha de Jhansi. Consta que seu empenho foi tão grande no filme que sofreu um ferimento grave numa das cenas de ação sendo socorrida para um hospital de urgência onde levou 15 pontos.
Mas os embates mais importantes são mesmo os travados com os invasores ingleses no campo das ideias e visões de mundo, aí fica claro que por trás de todo verniz aristocrático se esconde a verdadeira cara dos colonizadores, um bando de desalmados egoístas que tratam os colonizados como sub-raça, expondo-os aos mais terríveis e humilhantes suplícios, assassinando-os friamente em nome da “nobre” rainha da Inglaterra.
É bom deixar claro que em nenhum momento o filme incita a ira ou o desprezo pelos ingleses, não se trata de um panfleto político. É o próprio registro histórico das ações dos colonizadores que demonstra quem eram e como agiram, o espectador que faça sua própria avaliação.
Manikarnika, A Rainha de Jhansi foi lançado em janeiro de 2019 nos cinemas indianos, até o momento teve um faturamento bruto de quase 13 milhões de dólares, segundo dados do Internet Movie Data Base(IMDB).
Confiram.
7 comentários
Mais um filme pra selar o oriente como o grande produtor de cinema da contemporaneidade. Uma pergunta: esse número está certo, professor? Apenas 13 milhões de dólares de faturamento? Uma produção como essa é muito mais cara que esse faturamento! Abraços
ResponderExcluirPois é Fabiano, creio que esses números se referem apenas ao ano do lançamento (2019) não ao faturamento total até hoje.
ExcluirQue texto tão rico de informações, e instigante também, o utltimo filme indiano que consumi a pouco tempo, e que trazia a luta de dois personagens reais no combate a dominicação inglesa foi o RRR (disponivel na NETFLIX) e que ganha ares de épico, porém se t ransformando numa agradável sessão de aventura, musical, drama e comédia, Cinema de BOMBAIM em alta cotação. Sucesso sempre querido Romero. Grato pelo saber.
ExcluirObrigado caro Cronica-mente, sua presença aqui enriquece sobremaneira o espaço
ResponderExcluirPrimeiro a crítica, depois necessariamente e urgentemente, o filme. Através da análise crítica bastante elucidativa, o texto genial possibilita conexões que ampliam a capacidade perceptiva de enxergar a capilaridade de detalhes em que a obra foi tecida. Sublinho a importância do aparecimento da história e da cultura do país em filmes, destacada por Romero. O que, de certa forma, justifica o amor indiano pelo cinema. “Malditos índios. Vocês não sabem ler inglês?” diz o colonizador. Rani Lakshmibai responde: “Eu posso ler inglês. É uma mera linguagem. Apenas palavras. Palavras sem cultura não têm significado. [...] A língua inglesa pode ser nossa habilidade, nunca nossa língua materna. Nossa língua materna é semelhante à nossa mãe e só pode haver uma.” Me lembrou as escolas bilingues para crianças que proliferam no Brasil. A análise crítica e o filme tornam-se inseparáveis, uma aula sobre as formas mais eficazes de dominação e exploração: Deixar-se colocar as pulseiras do medo, provocar o desaparecimento perverso da língua materna e a perda da autoestima, aniquilar com a cultura fazendo todo um povo baixar a cabeça frente ao colonizador explorador. Realmente extraordinário! Obrigada pela excelente análise crítica, Romero.
ResponderExcluirObrigado pela leitura e avaliação qualificada
ResponderExcluirRomero. Seu Olhar é um farol e suas palavras nos fazem ver o filme. E melhor: querer assistir o filme que você já nos mostrou. Eu não conheço o cinema indiano. Agora, depois de seu texto, estou muito curiosa. O tempo que me falta vai se estender milagrosamente em tempos para o cinema. Namastê.
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