O Riso Amargo da Desesperança e as Pegadas Sangrentas em Gotham City

outubro 04, 2019




No ano chumbo-oliva de 1968, o ano que não terminou como bem nominou Zuenir Ventura, Jards Macalé anunciava aos quatro cantos: “Cuidado! há um morcego na porta principal... Cuidado! há um abismo na porta principal... Os mortos vivos perambulam aqui em Gotham City…” Era uma metáfora para descrever aqueles tempos onde pessoas eram assassinadas, trucidadas e desapareciam.

Agora, Gotham City virou realidade e está toda lá no neorrealismo contemporâneo de “Coringa”, o filme dirigido por Todd Phillips que é uma fratura exposta expelindo sangue por todos os poros. Não, não é o que chamam de “violência gratuita”. O cinema é um espelho que reflete o mundo a sua volta, o cinema não inventa nada, pode até adornar as cenas com efeitos especiais de imagem e som, mas o que está ali, na tela, diante dos nossos olhos e ouvidos é a cara da realidade refletida no espelho nem tão mágico do cinema.

Gotham City existe, é uma cidade onde os párias que sobrevivem no sub emprego são espancados nas ruas por uma juventude sem rumo nem futuro, os assalariados andam de ônibus com os vidros pichados ou em trens do metrô idem. Os elevadores dos prédios habitados pelos desvalidos de Gotham City são mal conservados, rangem e param subitamente antes de chegar no andar desejado. A prefeitura de Gotham City cortou as verbas dos programas sociais e isso implica o fim da assistência médica psiquiátrica e os remédios distribuídos gratuitamente com os mais necessitados (qualquer semelhança não terá sido mera coincidência).

Os lixeiros de Gotham City estão em greve, o lixo toma conta da cidade e ratos gigantescos começam a aparecer por todas as partes. Essa é uma metáfora irônica e poderosa anunciada logo nos primeiros segundos de “Coringa”, o mais politizado dos filmes produzidos pela DC Entertainment. É nesse cenário realista que o incrível Joaquin Phoenix desenvolve o seu Coringa, um simples palhaço de rua que acaba sendo transformado pelas circunstancias num cruel assassino e, posteriormente, no líder de um movimento popular por reivindicação de cidadania.

A televisão, o rádio e os jornais são os braços óbvios do poder dominante em Gotham City (aliás, como em todo lugar) e o Coringa decide enfrentar essa máquina ao seu modo numa das sequências mais impactantes do filme.

O que incomoda mesmo neste perturbador “Coringa” é que nada parece cenografia de estúdio, as locações, despojadas de qualquer glamour, são reais, as cenas de rua mostram farmácias, lojas, restaurantes, cinemas, tudo igual a qualquer cidade que conhecemos, e quando saímos do cinema percebemos, não sem um leve incômodo, que estamos caminhando “dentro” de Gotham City.

Como em “Bacurau”, a plateia é arrastada pelos atos de violência do personagem e aplaude e ri nas cenas mais chocantes onde o sangue respinga por todos os lados, inclusive salpicando de vermelho a bizarra maquiagem do Coringa. Não deixa de ser preocupante essa reação, embora se saiba que é uma explosão catártica provocada pela realidade vivida nesse país (ainda) dividido e proclamando ódio especialmente nas tais redes sociais.

O riso aterrorizante e sem nenhuma graça do Coringa e as pegadas de sangue que deixa por onde passa são signos fortes, emblemáticos do momento histórico em que vivemos em todo o planeta, um momento marcado pela desumanidade dos poderosos e a tirania dos desalmados.

O cinema é só o espelho.

("Coringa" está sendo exibido no Cine Sercla no Partage Shopping)

5 comentários

  1. Excelente Texto! Em minha opinião, o oscar está nas mãos do Phoenix.

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  2. O filme, apesar de se passar na década de 60, é um reflexo do que acontece no tempo atual. O desinteresse e a falta de empatia pelo outro. Os pobres sendo, a cada dia, jogados na miséria...verbas cortadas. O que mais me impressionou foi o desempenho do ator Joaquin Phienix. Phoeniz foi a fundo em seu personagem, trazendo momentos de profunda tensão psicológica e desequilíbrio mesclados a movimentos e posturas que a mim me fizeram recordar Chaplin e Michael Jackson. Phoenix interpretou um Coringa adoecido pelas intempéries da vida e um processo econômico-social enlouquecedor. Há muito não via uma atuação tão forte quanto essa. Louvável.

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