Viva Bacurau!
setembro 23, 2019
Ainda lembro o tempo,
bem distante é verdade, quando os exibidores colocavam em letras grandes no
cartaz do filme brasileiro a tarja “nacional”. O aviso era garantia de grande
público, as comédias musicais, chamadas pejorativamente pela crítica acadêmica
de “chanchada”, batiam recordes de bilheteria em todo o País.
A popularização da TV
e o aparecimento dos filmes intelectuais do Cinema Novo afastaram
definitivamente o grande público dos filmes nacionais, grosso modo foi isso que
aconteceu.
Mas o cinema
americano, presente nas telas brasileiras a mais de um século, não sofreu
nenhum abalo, pelo contrário aumentou a cota de filmes importados nos cinemas
do Brasil.
Essa é uma questão que
nunca foi resolvida nem pelos governos da dita esquerda nem muito menos pelos
integrantes da chamada direita.
O mercado de cinema
mundial não é para amadores, e os executivos das “majors” hollywoodianas
conhecem bem essa cartilha (e tabuada).
Acompanho essa guerra
econômica-política-cultural há muito tempo, são batalhas marcadas pela
sabotagem privada e pelo descaso público.
Rio de Janeiro, anos
1970, cine Roxy em Copacabana, em cartaz o filme nacional “Cléo e Daniel” de
Roberto Freire com John Herbert e Irene Stefânia. Me aproximo da bilheteria,
peço uma meia entrada, a moça alerta “é filme nacional, viu?” Respondo que sim,
sei que é um filme nacional. Ingresso na mão me dirijo ao porteiro, novo aviso:
“é filme brasileiro, viu?”. Já na sala de exibição, mais um golpe baixo: a tela
gigante para filmes em 70 milímetros, o dobro da película normal, hoje fora de
uso, deforma a imagem do filme nacional feito em 35 milímetros. O espectador
leigo não sabe, para ele o defeito é do filme brasileiro que é “mal feito”.
Cine Babilônia,
Campina Grande, início da década de 1980. Subo na cabine de projeção e percebo
uma caixa com tocos de carvão usados. Os carvões eram peça fundamental nos
projetores analógicos da época, eram os responsáveis pelo brilho e luminosidade
do filme. Quando gastos, a imagem ficava escura e amarelada. Pergunto ao
projecionista por que ele guarda os tocos de carvão, ele responde
tranquilamente: “ordem da gerência, é para usar nos filmes nacionais”. Pano
rápido.
Fortaleza, Shopping
Del Paseo, ano 2010 deste século 21, um sábado de verão, e vocês sabem como é a
temperatura de verão nas cidades litorâneas, apenas duas salas de cinema no
shopping, uma estava exibindo “O Bem Amado”, comédia de Guel Arraes com Marco
Nanini. Justamente nessa sala, o cartaz do filme tinha uma tarja atravessando-o
de ponta a ponta na diagonal: “Ar Condicionado quebrado”. Podem até rir, mas
não é piada.
Alguns podem até achar
que tudo isso não passou de uma grande coincidência, que é “teoria da
conspiração”. Nossa idade e experiência neste campo não permitem esse
raciocínio ingênuo totalmente desligado da realidade.
O certo é que vale
tudo e muito mais nesse mercado dominado pelo cinema importado e desdenhado
pelo poder público.
O Brasil é hoje,
talvez, o maior produtor de filmes inéditos do mundo. Os filmes são produzidos
mas não conseguem “janela” para exibição.
O ano passado, 2018,
teve um caso emblemático aqui em Campina Grande: a produção local “O nó do
diabo”, apesar de sua qualidade artística, não conseguiu tela nos cinemas da
cidade para exibição. Foi lançado numa sessão muito especial, com um projetor
emprestado, num “não cinema”, o Cine São José, que depois de reformado pelo
governo do estado perdeu a capacidade de exibir filmes (não possui projetor, e
não se sabe se possuirá um dia) e foi transformado num espaço para shows
musicais, teatro e palestras (com uma programação decente, registramos).
Contrapondo esses
episódios, temos o caso do filme “Vingadores: Ultimato”, produção da Disney,
lançada no dia 25 de abril deste 2019, ocupando nada menos que mais de 80% de todas
as (poucas) salas de cinema existentes nesse país tropical. A comédia “De
pernas pro ar 3”, dirigida por Julia Rezende e com Ingrid Guimarães, um sucesso
de público, foi retirada às pressas de cartaz para ceder as salas para o filme
da franquia Marvel.
Na China, para dar um exemplo,
só podem ser exibidos 6 filmes americanos por ano, nenhum a mais. Xenofobia? De
jeito nenhum, nos EUA não exibem nem um filme chinês por ano. Não estou
defendendo a proibição de filmes estrangeiros, apenas tenho a impressão que
deveria haver um equilíbrio mais justo no parque exibidor nacional.
Outro exemplo da
estratégia de marketing avassaladora praticada pelas “majors” estrangeiras: o
novo filme da série James Bond só deverá ser lançado em abril de 2020, mas as
filmagens, a escolha dos atores e as locações já são divulgadas desde abril
desse ano na imprensa internacional. Quando o filme chegar finalmente nos
cinemas, o público estará tão ansioso pela overdose de informação que não resta
alternativa a não ser ver o filme. Essa técnica de divulgação não é nova, e
agora reforçada pela internet tem seus resultados ampliados numa proporção
geométrica. É assim que funciona.
O doutor em
sociologia, jornalista, pesquisador, professor e apresentador do principal
programa da Radio France sobre as indústrias criativas e os meios de
comunicação, Frédéric Martel, detalha minuciosamente em seu livro “Mainstream –
A guerra global das mídias e das culturas” (Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 2012), como se processa a disputa mundial por mercados para filmes,
séries, novelas e audiovisuais em geral.
É, como diz o provérbio português, de fazer corar frade de pedra.
O filme é uma
mercadoria, um produto vendável, mas é também arte e cultura, é uma forma muito
particular de ver, interpretar e difundir uma visão de mundo, a visão de quem o
produz.
Garantir uma vaga
nesse disputadíssimo mercado não é só uma vitória econômica, é um ganho bem
maior político, ideológico, sociocultural. Hollywood aprendeu bem cedo essa
lição, e jamais esqueceu.
Não adianta ter uma
produção cinematográfica de qualidade, premiada, elogiada pela crítica se essa
mesma produção não consegue chegar para o público, ou quando chega é quase de
maneira invisível, fora as rasteiras já citadas.
Num momento em que o
Brasil passa por uma verdadeira convulsão no campo da educação e cultura, com
ações claras de censura, retaliações econômicas e intervenções governamentais
supressoras da liberdade de expressão e manifestação, o boca-a-boca voluntário em
torno de um filme nacional é um acontecimento raro e merece destaque. Desde o inesquecível
“Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes, que não víamos tanto entusiasmo espontâneo
por um filme brasileiro.
“Bacurau”, e o
interesse em torno dele, conseguiu mobilizar e atrair a atenção de notáveis da nossa argumentação cartesiana e dialética
em todo o País, cito por exemplo o professor e crítico cinematográfico João
Batista Brito, o multiartista e também crítico de cinema e literatura Bráulio Tavares e o professor-doutor Durval
Albuquerque, todos três se debruçaram sobre o filme e escreveram resenhas
consagradoras, as quais li com atenção e concordo com a argumentação deles, como também discordo
em alguns pontos (é uma leitura obrigatória para quem viu “Bacurau”). Só esse
fato já seria suficiente para aplaudir o desempenho do filme, afinal não é todo
dia que esses brilhantes intelectuais dedicam tempo, reflexão e palavras ao
cinema nacional.
O ex-deputado e
historiador Chico Alencar usou a tribuna da Câmara para um pronunciamento sobre
economia criativa e citou “Bacurau” como um símbolo dessa economia que é
assentada na cultura e criatividade do povo brasileiro. Filme nacional sendo
citado como exemplo na tribuna do Congresso não é muito comum de se ver, e não
é mesmo.
“Bacurau” emplacou a quarta semana consecutiva
em cartaz nos cinemas brasileiros, é uma verdadeira façanha digna de nota
quando sabemos como funciona o sistema exibidor, é um acontecimento notável. Não
deveria ser, já que se trata de um filme nacional e afinal estamos no Brasil,
mas é essa a verdade.
Quanto ao filme
propriamente dito, tem suas virtudes e vícios, vê-lo é a melhor forma de
reflexionar sobre sua proposta e como isto foi plasmado pelos realizadores,
elenco e equipe em forma e conteúdo. De tudo o que está posto lá, e que merece
uma abordagem mais ampla à parte, destaco um fragmento que me impressionou
positivamente: no embate entre os moradores de Bacurau e os estrangeiros, a
população se refugia no museu e na escola (e aqui não estamos nos referindo
apenas aos prédios de cimento e cal), esses locais são inexpugnáveis para os
invasores. A simbologia é cristalina: o museu e a escola, ou seja a cultura e a
educação, como imperativos da soberania de um povo, como patrimônio
indestrutível de um País. Essas são, para mim, as armas mais poderosas para uma
resistência eficaz e duradoura, embora existam aqueles que ainda acreditam no
poder dos rifles e bacamartes. É uma escolha entre vida ou morte, entre
civilização ou barbárie, diálogo ou guerra.
Façam sua escolha, a
minha já está posta.
8 comentários
Parabéns Romero! Você vem nos proporciona um meio de ver o cinema (principalmente brasileiro) com um olhar crítico e construtivo, espero que você possa cada vez mais nos ajudar a ver cinema com um novo olhar.
ResponderExcluirAmigo Sergio, é um privilégio ter leitores como você. Vamos trabalhar para corresponder a altura. Obrigado.
ExcluirParabéns pelo Blog. Sempre bom poder ter uma opinião especializada sobre cinema, arte e afins. Sucesso!
ResponderExcluirObrigado pela atenção e carinho.
ExcluirMuito bom... mesmo sem ter ainda visto o filme já tenho uma impressão da qualidade
ResponderExcluirVeja, é muito bem realizado.
ExcluirViva bacurau! E viva o cinema nacional.
ResponderExcluirMoro em um bairro que ainda tem locadora. Sim! E o rapaz que trabalha lá diz que eu sou uma das poucas pessoas que gosta de filme nacional
Caro anônimo, viva o cinema nacional! Obrigado pela participação.
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